4.6.18

automóveis: delírio & perversão



Do ponto de ônibus e da janela do coletivo, olho para a rua e fico pasmado, atemorizado, com a quantidade de carros na pior das equações: um carro/uma pessoa, um carro/uma pessoa, um carro/uma pessoa... Filas e filas paradas e insalubres, constituídas por uma série de um único ser vivo dentro de uma máquina que só a fabricação polui mais que todo poluente emitido durante sua “vida” útil. E as pessoas vão se naturalizando com este mórbido processo simbiótico do “meu carro, minha vida”.

Do desconforto do ônibus e das longas esperas nos pontos e terminais (sim, somos coagidos a buscar o transporte individual e abrimos mão da reivindicação pela qualidade do coletivo), lamento assistir ao número de indivíduos encastelados entre iguais nas ruas congestionadas, e lembro reiteradamente de um livro que mistura a tecnologia industrial, sob a égide do mercado, com o que há de mais natural a nós (animais racionais e irracionais), o apetite sexual: Crash!.

O título faz referência ao “Crash Test”, os testes de colisão de veículos para verificar as normas de segurança em situações de acidente de trânsito. O autor britânico J.G. Ballard publicou a obra em 1973, sendo que o embrião da ideia adveio do anseio em retratar “o universo das comunicações assombrado pelos espectros de tecnologias sinistras e pelos sonhos que o dinheiro pode comprar”, como afirmou o escritor.

O automóvel tem função simbólica determinante na concepção da trama, que se estabelece na história de um casal que passa a praticar novas fantasias depois de uma colisão. Mas os eventos orbitam em torno de Vaughan, um tipo de messias apocalíptico capaz de formular e estimular o vínculo entre o nocivo e a libido na fetichização do automóvel. A narrativa acarreta seres humanos excitando-se com batidas, feridas, ferragens, escoriações e estilhaços provocados em acidentes automobilísticos.

“Ao me olhar, eu concluí que a marca e o ano do meu carro poderiam ser reconstituídos por um engenheiro da indústria automobilística através da análise dos padrões dos meus ferimentos”. Quem diz isso é o narrador, mas eu não estranharia se ouvisse de um dos moradores no condomínio em que moro, onde se referem aos vizinhos pela marca do carro e pleiteiam que o jardim seja transformado em novas vagas de garagem.

Ballard denomina de “walking dream” o artifício que emprega para conceber a atmosfera em suas histórias, e complementa: “É como se estivéssemos sonhando acordados”.

Também tenho a sensação de que estou sonhando acordado quando presencio a procissão de carros formando um cortejo fúnebre rumo ao enterro da sanidade.

P.J.
A felicidade dos gafanhotos e outras crônicas