16.12.18

nunca fomos tão engajados


[...] a intelectualidade nunca esteve tão engajada. Rara mesmo, em nossos dias, é a torre de marfim. Acredito aliás que a crítica independente, sem patrocinador nem interesse direto à vista, é o que mais nos está fazendo falta. Quase todos estamos empenhados, suponhamos, na administração pública, nalgum partido, num departamento da universidade, numa firma de pesquisa, num sindicato, numa associação de profissionais liberais, no ensino secundário, num setor de relações públicas, numa redação de jornal etc, com o objetivo nem sempre muito crível de usar os nossos conhecimentos em favor de alguma espécie de aperfeiçoamento e modernização. Assim, um dos impulsos essenciais à idéia de engajamento, que mandava trazer a cultura dita desinteressada ao comércio dos interesses comuns, se realizou plenamente. O que não ocorreu foi a esperada diferença democrática que esta descida à terra faria. Na falta dela, o compromisso social dos especialistas, incluída aí a dose normal de progressismo, é o mesmo que ir tocando o serviço, e a combatividade do engajamento pode ter algo de um lobby de si próprio. A tecnificação da sociedade avança e o número dos especialistas aumenta. A ligação entre estes e governo, administração pública e gestão do capital é estreita, formando o bloco da autoridade moderna. "Os varões sabedores", como dizia Machado de Assis, para caracterizar inteligência rara que acabava de se enganar por completo. Do outro lado da cerca os leigos ficam inermes, e, mais que isso, desqualificados. O bloco das capacidades de que mal ou bem as grandes lideranças sindicais também fazem parte, conhece estes efeitos e trata de tirar proveito deles. Os representantes do país organizado, e também de si mesmos, defrontam-se com o país desorganizado, oposição que em parte se sobrepõe à divisão entre as classes, que entretanto não desaparecem, a não ser que fechemos os olhos. Neste ponto a velha inspiração democrática do engajamento intelectual talvez tenha alguma vigência moderna.

Roberto Schwarz
1994