24.12.18

Poesia-resistência


"Sociedade de consumo" é apenas um aspecto (o mais vistoso, talvez) dessa teia crescente de domínio e ilusão que os espertos chamam "desenvolvimento" (ah! poder de nomear as coisas!) e os tolos aceitam como "preço do progresso".

Quanto à poesia, parece condenada a dizer apenas aqueles resíduos de paisagem, de memória e sonho que a indústria cultural ainda não conseguiu manipular para vender. A propaganda só "libera" o que dá lucro: a imagem do sexo, por exemplo. Cativante: cativeiro.

Ou quererá a poesia, ingênua, concorrer com a indústria & o comércio, acabando afinal por ceder-lhes as suas graças e gracinhas sonoras e gráficas para que as desfrutem propagandas gratificantes? A arte terá passado de marginal a alcoviteira ou inglória colaboracionista?

Na verdade, a resistência também cresceu junto com a "má positividade" do sistema. A partir de Leopardi, de Holderlin, de Poe, de Baudelaire, só se tem aguçado a consciência da contradição. A poesia há muito não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade. Daí vêm as saídas difíceis: o símbolo fechado, o canto oposto à língua da tribo, antes brado ou sussurro que discurso pleno, a palavra-esgar, a autodesarticulação, o silêncio. O canto deve ser "um grito de alarme", era a exigência de Schonberg. E os expressionistas alemães queriam ouvir no fundo do poema o "urro primitivo", Urschrei!

[...]

A ideologia procura compor a imagem de uma pseudotatalidade, que tem partes, justapostas ou simétricas ("cada coisa em seu lugar", "cada macaco no seu galho"), mas que não admite nunca as contradições reais. A ideologia dominante não consegue ser, a rigor, nem empírica nem dialética. Não consegue ser empírica porque as leis do mercado e da burocracia desprezam a face do ser vivo singular. A ratio abstrata transformou o corpo e a cabeça de cada indivíduo em mão-de-obra sem nome nem rosto que pode ser substituída a qualquer hora. Das fontes da natureza fez matéria-prima; do fruto do trabalho dez mercadoria a ser trocada e consumida. Pela força mesma dessa abstração, que o capitalismo incha e reproduz a cada momento, a ideologia tampouco suporta o momento da negação com que o pensamento dialético exige que a "má positividade" seja superada.

Sob o peso desse aparelho mental não totalizante, mas totalitário, vergam opressos quase todos os gestos da vida social, da conversa cotidiana aos discursos dos ministros, das letras de música para jovens às legendas berrantes de cartazes, do livro didático ao editorial da folha servida junto ao café da vítima confusa e mal amanhecida.

Alfredo Bosi
1977