13.1.19

quando o poder se vale do desejo como sua principal arma


Se, desde o capitalismo industrial, a mídia vem constituindo um importante equipamento do poder, sob a nova versão do regime ela ganha um protagonismo sem precedentes, sobretudo graças aos avanços tecnológicos que permitem uma comunicação generalizada em tempo real. Um exemplo é o que vem se fazendo em vários países da América do Sul, na última década. Com base na edição de informações selecionadas numa aliança entre investigações policiais e poder Judiciário, a mídia constrói narrativas que, veiculadas em tom dramático, amplificam e agravam a imagem da crise econômica e do perigo de que ela seria portadora. Isso alimenta a busca desesperada das subjetividades por uma saída, a qual lhes será oferecida pela mesma narrativa, na figura fictícia de um personagem bode expiatório sobre quem cairia a culpa pela situação de crise, também ficticiamente armada. Assim como a construção da narrativa se baseia em informações reais que são, no entanto, selecionadas e editadas, também desempenharão o papel de bode expiatório figuras ou partidos que se quer eliminar da cena política, em torno dos quais foca-se precisamente a seleção e a edição de informações.

Veiculadas dia após dia, várias vezes repetidas e com diferentes timbres de dramaticidade, tais narrativas oferecem uma pletora de sinais que confirmam a cena temida portadora do perigo de desagregação eminente, fabulada por uma subjetividade reduzida ao sujeito. Sucumbida ao medo, ao ponto em que este ultrapassa o limite do metabolizável e torna-se traumático, ela está pronta para agarrar-se ao conto do bode expiatório para nele projetar a causa de seu mal-estar, como sua única saída, ou pelo menos a mais imediatamente disponível. É, portanto, com alívio que tais narrativas são recebidas e adotadas como verdade por cada um - que, juntos, somam muitos. É que elas justificam o mal-estar e permitem expulsá-lo de si o projetando sobre um outro, além de que seu efeito de contágio gera uma sensação de pertencimento em subjetividades que, por não terem acesso ao corpo-vivo do mundo ao qual pertencem por princípio - acesso a partir do qual poderiam participar da construção do comum - sentem-se isoladas e temem ser humilhadas e excluídas do convívio social. As manifestações públicas massivas desse tipo de subjetividade constituem o ritual coletivo que lhes oferece a sensação de pertencer a uma comunidade homogênea que forma um todo supostamente estável, a qual substitui a construção múltipla e variável do comum e as protege da ameaça imaginária que essa construção lhes traz.

É com base nesse trauma induzido que se constroem as condições para o poder sem limites do capitalismo globalitário, que passa pela tomada do poder de Estado, em situações em que este todavia não se encontra inteiramente em suas mãos. Isto se faz por meio de algumas operações que se revezam e se juntam em diferentes doses. A primeira são as eleições mascaradas de expressão da vontade popular - uma vontade que é, na verdade, mero fruto de manipulação populista através de procedimentos acima referidos. A segunda são as operações fraudulentas no momento da votação e a terceira o impeachment dos governantes no poder, quando necessário. Este é realizado pelo parlamento, disfarçados de recuperação da democracia por uma ficção jurídica que lhe assegura a legitimidade que, nesse caso, é manobrada pela divulgação midiática massiva de tal ficção. Se golpes de Estado efetuados pela força das armas militares interessavam ao capitalismo industrial, estes já não interessam ao capitalismo financeirizado. Estados totalitários são uma pedra no sapato para a livre circulação de capitais, além do fato de este tipo de Estado promover o princípio identitário, quando o novo regime necessita de subjetividades flexíveis.

Em vez da força das armas militares, as armas de que se utiliza o capitalismo globalitário são de duas ordens: a força pulsional e seu porta-voz, o desejo, sua arma micropolítica, articulada a uma aliança com as forças políticas locais mais reativas, sua arma macropolítica. Estas últimas encarnam-se em personagens ignorantes, grosseiros, abrutalhados e extremamente conservadores, remanescentes de um capitalismo pré-financeirizado e, na maioria dos casos, de uma mentalidade ainda mais arcaica, pré-republicana, colonial e escravocrata. Tais personagens patéticos são usados como laranjas para fazer o trabalho sujo de expulsão de cena dos políticos progressistas, preparando o terreno para a tomada de pode pelo capitalismo financeirizado, mundial por sua própria natureza, já que no mapa de sua circulação não existem fronteiras nacionais. No caso do Brasil, é fácil encontrar esse tipo de figuras nos poderes Legislativo, Executibo e Judiciário, que estão neles instalados desde sempre, apenas atualizando seu discurso e procedimentos. Para ficar apenas em dois exemplos mais óbvios, citemos em primeiro lugar os deputados ruralistas, donos do agronegócio que destrói os ecossistemas e expulsa comunidades indígenas de seus territórios ancestrais, recuperados pela Constituição de 1988 - quando não as dizimam literalmente em um genocídio impune que sequer é veiculado pela imprensa local. Em segundo lugar, grande parte dos deputados evangélicos com seu moralismo hipócrita e um ferrenho machismo heteronormativo, patriarcal e familista, que se justifica e se legitima pela suposta vontade de deus. Mais amplamente estão os corruptos, que proliferam indistintamente por todos os partidos e que viabilizam negócio de Estado espúrios em troca de propina das empresas, por meio de superfaturamento e outras falcatruas. O exemplo mais óbvio é o das empreiteiras responsáveis pela construção de equipamentos públicos que, embora sejam empresas locais, são de capital transnacional, com exceção de algumas como a Odebrecht.

O trabalho sujo consiste antes de mais nada da preparação e realização do golpe propriamente dito. Uma vez consumado o golpe, a segunda tarefa consiste em decisões tomadas rapidamente pelo poder executivo e/ou legislativo, muitas vezes votadas na calada da noite, quando todos dormem, ou em períodos de férias e feriados - especialmente os de Natal e Ano Nono, quando a sociedade está distraída com compras compulsivas de presentes e celebrações em família, na ânsia de encenar uma imagem de felicidade e harmonia. O ritmo alucinado de tais decisões é difícil de acompanhar, pois quando a sociedade (ou, pelo menos, parte dela) se dá conta de uma dessas decisões consistem basicamente em desmantelar as leis trabalhistas e de previdência social e desresponsabilizar o Estado nos setores da educação, saúde, moradia e condições urbanísticas - o que atinge basicamente as camadas mais desfavorecidas - assim como privatizar o número máximo possível de bens públicos, sobretudo aqueles cobiçados pelo capital privado por sua alta rentabilidade.

No entanto, uma vez feito o trabalho sujo, começa um segundo capítulo, no qual os personagens que o executaram passam a ser também eles ejetados, por meio dos mesmos procedimentos jurídico-midiáticos que haviam expulsados de cena os políticos progressistas. A estratégia consiste em multiplicar, dia após dia, os decretos de prisão de tais políticos, ao mesmo tempo em que se prende os donos e altos-executivos das principais megaempresas, com eles mancomunados. A partir das delações "premiadas" de uns contra os outros, passa-se a privilegiar as informações referentes à corrupção desses políticos, os quais são filiados precisamente aos partidos que fizeram o papel de laranjas na derrubada dos governos progressistas. Estes tornam-se os novos protagonistas do papel de bode-expiatório na narrativa midiática. Isso, no entanto, não quer dizer que se deixa de focar os políticos de partidos progressistas, os quais continuam na berlinda até sua total destruição. Resolve-se com essa operação dois problemas de um só golpe. O primeiro consiste no expurgo dos tais personagens patéticos da cena política, por meio de sua condenação que lhes retira o direito de exercer funções públicas. Isto tem a vantagem suplementar de dar à operação uma máscara de neutralidade, já que aparentemente a mesma é imparcial pois visa não só os partidos à esquerda mas todos os demais partidos e, com isso, leva a crer que a corrupção é seu suposto foco, que nada teria a ver com posições políticas. Gera-se assim mais verossimilhança à ficção da legitimidade constitucional que encobre o golpe de Estado recém-realizado - o qual aliás continua em curso por meio dessa operação. O terreno fica livre para a tomada de poder por administradores formados no capitalismo de última geração, que azeitarão os trilhos do país para o tráfico mais eficiente dos fluxos do capital financeirizado, abolindo qualquer barreira à sua livre circulação. O segundo problema que se resolve é a ampliação da cena econômica para a disputa dos negócios locais, os quais se estendem a outros países - principalmente na América Latina e na África, cujos mercados foram conquistados em sua maioria pelos governos do PT. E tudo isso recebido de braços abertos por grande parte da sociedade brasileira, a essas alturas inteiramente identificada com a narrativa midiática. O último capítulo dessa narrativa consistirá certamente em apresentar o capital financeirizado no papel de salvador da pátria que, se tiver o pleno comando do país, lhe devolverá a dignidade pública e reestabelecerá sua economia da grave crise deliberadamente orquestrada.

Na América Latina, tais procedimentos são usados para desmantelar os governos progressistas que tinham se instalado nas últimas décadas em alguns países do continente, após a dissolução das respectivas ditaduras militares, a qual se deu ao longo dos anos 1980. É no momento da ascensão da esquerda ao poder que começa a ser concebido o seriado da nova modalidade de golpe. O primeiro laboratório da consumação da nova estratégia de poder foi a destituição de Fernando Lugo da presidência do Paraguai em 2012. Já comprovada a eficácia do novo conceito de golpe, a produção do seriado no Brasil, que havia começado a ser concebido em 2002 com a eleição de Lula, intensifica-se e torna-se mais veloz dia após dia, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016. Nas mencionadas grandes manifestações de massa a favor de sua destituição, o mantra "a culpa é da Dilma", que pouco a pouco tomou conta freneticamente das ruas e praças por todo o país, surgiu precisamente do consumo da ficção que a mídia havia construído, tendo a presidenta, o Partido dos Trabalhadores e seus quadros - principalmente seu líder, Lula da Silva - no papel principal de bodes expiatórios. Isso tem acontecido em outros países latino-americanos quando ainda resta a seus governantes progressistas algum tempo de mandato.

Já em outras situações, quando seus mandatos estão próximos do término, a estratégia midiático-jurídica-parlamentar se inscreve na preparação das eleições, eliminando da disputa o(s) candidato(s) mais progressista(s), de modo que esta se dê entre candidatos neoliberais e ultraconservadores - sendo estes últimos um indesejado efeito colateral de seu empoderamento pelo próprio capitalismo financeirizado que, como vimos, neles se apoia na preparação da tomada de poder. É o caso do Peru, em que o candidato progressista perdeu de longe para o neoliberal, o qual venceu com uma margem pequena de diferença em relação à candidata ultraconservadora.