13.11.19

Por uma ecologia social


Não e possível, atualmente, considerar os problemas ecológicos como marginais, sem importância e até burgueses. Os dados sobre o aumento da temperatura do planeta devido à crescente taxa de gás carbônico na atmosfera – o conhecido efeito estufa – o descobrimento de buracos na camada de ozônio, fenômeno atribuído ao uso imoderado de cloro fluorcarbono, que permite a penetração das radiações ultravioleta, a contaminação da água potável, do ar, dos oceanos e dos alimentos, a extensa eliminação de florestas pelas chuvas ácidas e cortes indiscriminados, a disseminação de material radiativo ao longo da cadeia alimentar... Tudo isso proporcionou à ecologia uma importância que jamais teve no passado. A sociedade atual está destruindo o planeta a níveis tais que superam a capacidade de auto saneamento da Terra. Estamos nos aproximando do momento em que o planeta não poderá manter a espécie humana, nem as complexas formas não humanas da vida que se desenvolveram através de milhões de anos de evolução orgânica. 

Frente a este cenário catastrófico, apresenta-se o risco de querermos eliminar os sintomas em vez das causas, e de que pessoas ecologicamente comprometidas pretendem soluções parciais e não respostas duradouras. O avanço dos movimentos verdes, por todo o mundo, confirma a existência de um novo impulso para as pessoas se ocuparem concretamente do desastre ecológico. Porém, se torna cada vez mais clara a necessidade de algo muito mais fundamental do que um impulso. Ainda que seja importante deter aglomerações urbanas, uso de substâncias químicas mortíferas na agricultura e na indústria alimentar, é necessário estar convicto de que as forças que conduzem a sociedade para a aniquilação planetária têm suas raízes numa economia mercantil de “crê ou morre”, num modo de produção que deve se expandir enquanto sistema competitivo. O que está em discussão não é simples questão de moralidade, de psicologia ou de voracidade. Num mundo em que cada qual está reduzido ao papel de comprador ou vendedor, em que toda empresa deve se expandir dentro de um contexto econômico de aves de rapina, o crescimento ilimitado é inevitável. Adquire a inexorabilidade de uma lei física que funciona, independe das intenções individuais, das propensões psicológicas, das considerações éticas. 

Quais são as causas de nossos problemas ecológicos? 

Atribuir a culpa de nosso problemas ecológicos à tecnologia, à mentalidade tecnológica ou à exploração demográfica, é incoerência. A tecnologia – a má tecnologia, como os reatores nucleares – amplifica problemas existentes; porém, de per si, não os produz. O aumento da população é relativo, se é que seja um problema. Os demógrafos (os que estudam estatisticamente as populações nos seus aspectos da natalidade, migrações, mortalidade, etc.) há muito tempo já sabem que o que faz as estatísticas crescerem são a pobreza material e a ruína cultural, e não as melhores condições de vida. Na verdade não sabem quantas pessoas poderiam viver decentemente no planeta sem provocar transtornos ecológicos. Os Estados Unidos, na última metade do século XIX, exterminaram milhares de bisões, vastas áreas de florestas primitivas e todo esse prejuízo aconteceu com população inferior a cem milhões de habitantes e com tecnologia muito atrasada para os níveis atuais. 

Na realidade, não era a tecnologia e a pressão demográfica que operavam, quando aconteceu esse grande drama de exploração. A praga que afligia o continente americano era mais devastadoras que uma invasão de gafanhotos. Era uma ordem social que se deveria citar em cerimonias: capitalismo, em sua versão privada no Ocidente e em sua forma burocrática no Leste. Eufemismos como sociedade tecnológica ou sociedade industrial, termos tão confundidos na literatura ecológica contemporânea, tendem a mascarar, com expressões metafóricas, a brutal realidade de uma sociedade predatória. Com isto distraímos nossa atenção de uma economia estruturada sobre a competição. 

Tecnologia e indústria são representados como os protagonistas perversos deste drama, no lugar do mercado e da ilimitada acumulação do capital, que consubstanciam um sistema de crescimento (acumulação) que por fim deglutirá toda a biosfera. 

Os problemas da Hierarquia e da Dominação 

Aos enormes problemas sistêmicos criados por esta ordem social devemos agregar os enormes problemas sistêmicos criados pela mentalidade que começou a se desenvolver muito ante do nascimento do capitalismo e que foi completamente absorvida por ele. Refiro-me à mentalidade estruturada em termos da hierarquia e domínio, na qual a dominação do homem pelo homem deu origem à concepção de que dominar a natureza fosse o destino e inclusive necessidade da humanidade. O fato de que o pensamento ecológico começou a difundir a ideia de que esta concepção é perniciosa, certamente é reconfortante. Por outro lado, ainda não se compreendeu claramente como surgiu essa concepção, por que existe e como pode ser eliminada. Devemos explorar as origens da hierarquia e da opressão, se quisermos encontrar uma solução para a destruição da ecologia. É fato que a hierarquia em todas as formas – domínio do ancião sobre o jovem, do homem sobre a mulher, do homem em forma de subordinação de classe, de casta, de etnia – não foi identificada como um âmbito de domínio muito mais amplo do que o domínio de classe. Esta tem sido uma das falhas cruciais do pensamento radical. Nenhuma libertação será completa, nenhuma intenção de criar uma harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza poderá jamais ter êxito enquanto não sejam erradicadas todas as hierarquias e não só a das classes, todas as formas de domínio e não somente a exploração econômica. 

A concepção de Ecologia Social 

Estas ideias constituem o núcleo essencial de minha concepção da ecologia social contida no livro “Ecology of Freedom”. Tenho afirmado com muito cuidado o uso que faço do termo social, quando trato de questões ecológicas, para introduzir outro conceito fundamental: nenhum dos principais problemas ecológicos que enfrentamos hoje podem ser resolvidos sem uma profunda mudança social. Esta é uma ideia cujas implicações não foram assimiladas plenamente pelo movimento ecológico. Levada à conclusão lógica, significa que não se pode pensar em transformar a sociedade presente gradativamente, com pequenas mudanças. Estas são freadas que podem apenas reduzir a louca velocidade com a qual a biosfera é destruída. Certamente, devemos ganhar o maior tempo que pudermos para evitar a destruição. Entretanto o biocídio prosseguirá a não ser que possamos convencer as pessoas de que é necessária uma mudança radical e que nos organizemos para tal fim. Deve-se aceitar que a atual sociedade capitalista precisa ser substituída por aquela que chamo sociedade ecológica, isto é, uma sociedade que implique nas radicais mudanças sociais indispensáveis para eliminar os abusos ecológicos. 

A Sociedade Ecológica 

Devemos refletir e debater profundamente sobre a natureza dessa sociedade ecológica. Ela não deverá ter hierarquia, nem classes, nem o conceito de domínio sobre a natureza. Por isso não podemos deixar de revalorizar os fundamentos do eco anarquismo de Kropotkin e os grandes ideais iluministas (razão, liberdade, força emancipadora dos ensinamentos) levados à frente por Malatesta e Berniere. Os ideias iluministas que direcionaram os pensadores anarquistas de um certo tempo devem ser recuperados, em sua totalidade, e transformados na forma de um humanismo ecológico que encarne uma nova racionalidade, uma nova ciência, uma nova tecnologia. 

Os motivos que me levaram a acentuar os ideias iluministas libertários não foram os meus gostos e minhas predileções ideológicas. Tratam-se, na realidade, de ideais que não podem deixar de ser levados em conta por qualquer pessoa comprometida, ecologicamente. Em todo o mundo, aparecem inquietantes alternativas aos movimentos ecológicos. Por outro lado, está se difundindo, na América do norte assim como na Europa, uma espécie de enfermidade espiritual, uma atitude contra iluminista. Com o nome de retorno à natureza, evocam-se atávicos irracionalismos, misticismos, religiosidades declaradamente pagãs. Culto das divindades femininas, tradições paleolíticas, rituais ecológicos vão se formando, em nome de uma nova espiritualidade. Este retorno do primitivismo não é um fenômeno inócuo. Frequentemente está embebido de um pérfido neomalthusianismo, que substancialmente propõe deixar morrer de fome, de preferências vítimas do Terceiro Mundo, com a finalidade de diminuir a população. A Natureza, afirmam, deve estar livre para continuar seu curso. A fome não é causada pelos problemas agrários nem pelo saque das grandes empresas, nem pelas rivalidades imperialistas, nem pelas guerras civis nacionalistas, e sim pela superpopulação. Deste modo os problemas ecológicos são esvaziados de seu conteúdo social e reduzidos à mítica interação das forças naturais, frequentemente com acentos racistas que cheiram a fascismo. 

Por outro lado, está em vias de construção um mito tecnocrático, segundo o qual a ciência e a engenharia resolveriam todos os males ecológicos. Como nas utopias de H.G. Welles, afirma-se que é necessária uma nova elite para planificar a solução da crise ecológica. Fala-se da exigência de maior centralização do estado que desaguaria na criação de um Mega-Estado, em paralelo com as multinacionais. E como a mitologia se tornou popular entre eco místicos, entre os sustentadores de um primitivismo em versão ecológica, do mesmo modo a teoria sistêmica se tornou muito popular entre eco tecnocratas, entre partidários do futurismo, em versão ecológica. Em ambos os casos, os ideais libertários do iluminismo – sua valorização da liberdade, do conhecimento, da autonomia individual – são negados pela sistemática pretensão de jogar-nos a um passado obscuro, mistificado e sinistro, ou de catapultar-nos como mísseis num futuro radiante, porém igualmente mistificante e sinistro. 

A Ecologia que Defendo 

A ecologia social, como a pretendo, lança mensagem que não é nem primitiva nem tecnocrática. Tenta definir o posto da humanidade na natureza – posto singular e extraordinário – sem cair no mundo tecnológico cavernicular, por um lado, e sem voar para fora do planeta com astronaves e estações orbitais de ficção científica. Sustento que a humanidade é parte da natureza ainda que dela difira profundamente pela capacidade que tem de pesar conceitualmente e de comunicar simbolicamente. A natureza, por outro lado, não é simplesmente uma cena panorâmica para ser vista passivamente através da janela. É o conjunto da evolução, evolução em sua totalidade, precisamente como o indivíduo é sua biografia por completo, não uma simples soma de dados numéricos que indicam seu peso, altura, inteligência e assim sucessivamente. Os seres humanos não são apenas uma de tantas formas de vida, uma forma meramente especializada para ocupar um dos tantos nichos ecológicos do mundo natural. São seres que, pelo menos potencialmente, poderiam fazer a evolução biótica auto consciente e conscientemente dirigida. Com isto não quero afirmar que a humanidade não chegue nunca a ter um conhecimento suficiente da complexidade do mundo natural para poder tomar o timão da evolução natural e dirigi-la segundo sua vontade. Pelo contrário, minhas reflexões sobre a espontaneidade apontam para sugerir prudência nas intervenções sobre o mundo natural e sustentar que se deve modifica-lo com grande cautela. Porém, como argumentei em “Thinking Ecologically”, o que verdadeiramente nos faz únicos, singulares no esquema ecológico das coisas, é que podemos intervir na natureza com um grau de autoconsciência e de flexibilidade desconhecidos de todas as outras espécies. 

Que possamos atuar de modo criativo ou destrutivo constitui o maior problema que devemos enfrentar em toda reflexão sobre nossa interação com a natureza. Ainda que nossa potencialidade humana de dar auto direção consciente seja enorme, devemos entretanto, recordar que somos ainda sub-humanos. 

Nossa espécie está dividida antagonisticamente: por idade, gênero, classe, renda, etnia, etc. Falar de humanidade em termos zoológicos como o fazem tantos ecologistas, inclusive tratando as pessoas como mera espécie e não como seres sociais que vivem em complexas criações institucionais e não em primitiva região selvagem – é ingenuidade absurda. Uma humanidade iluminada, junta para se aperceber de suas plenas potencialidades, em uma sociedade ecológica harmoniosa, é somente uma esperança, um dever ser e não um ser. 

Como será possível conseguir as transformações que proponho? Não acredito que elas possam acontecer através do aparato estatal, isto é, um sistema parlamentar. Minha experiência com o movimento parlamentar alemão me clarificou que o parlamento é moralmente daninho e corrupto. A representação dos verdes no Bundenstag confirmou, nestes últimos tempos, meus piores temores: sua maioria realista é favorável à participação da Alemanha na OTAN e sustenta uma forma eco capitalista incompatível com qualquer aproximação radical da ecologia. 

Outro dado importante: o parlamentarismo invariavelmente mina a participação popular na política, no sentido que foi atribuído à esta palavra há séculos. Para os antigos atenienses, a palavra política significava gestão da polis (cidade) por parte dos cidadãos em assembleias; mulheres, estrangeiros e escravos estavam excluídos. Também é verdade que eram os cidadãos ricos os que dispunham de recursos materiais e gozavam dos privilégios negados aos cidadãos pobres. 

A ecologia radical não pode ser indiferente à realidade material da vida humana, não pode ser indiferente às relações sociais nem às econômicas. O delicado equilíbrio existente entre o uso da tecnologia com finalidade de libertação e seus usos com fins destrutivos para o planeta é matéria de juízo social, porém um juízo que vem incessantemente ofuscado quando ecologistas sui generis denunciam a tecnologia como um mal irrecuperável ou a exaltam como uma virtude indiscutível. Os místicos e tecnocratas têm uma importante característica em comum: não se detém para examinar a fundo a questão ecológica, nem projetam a lógica para além das mais elementares e simples premissas. 

Uma Nova Política 

Uma nova política deveria, segundo minha opinião, implicar na criação de uma esfera pública de base extremamente participativa a nível da cidade, do povoado, da aldeia, do bairro. O capitalismo produziu tanta desestruturação dos laços comunitários quando devastação no mundo natural. Em ambos os casos, nos encontramos frente à simplificação das relações humanas e não humanas, sua redução às mais elementares formas interativas e comunitárias. Entretanto, onde existirem ainda laços comunitários é justamente aí que devem ser cultivados e desenvolvidos. Estudei esse tipo de política comunal (repito: entendo política no sentido helênico, não no significado atual que designo como estatal) em meu livro “The Rise of Urbanization and Decline of Civilizenship” (Sierra club, 1987). Por polêmico que possa parecer na Europa, porém menos nos Estados Unidos, creio na possibilidade de uma confederação de municípios livres como contra poder de base que se oponha à crescente centralização por parte do Estado-Nação. Neste terreno, uma política ecológica é possível e coerente com uma ecologia concebida como o estudo das comunidades humanas / não humanas. A ecologia não é nada se não se ocupa da interação entre as formas de vida para construir comunidades e desenvolverem-se como comunidades.

Murray Bookchin