20.11.07

[A divina fotogenia]

Ao aconchegar com as mãos a gola requintada ao rosto, Garbo afaga-se num inequívoco gesto narcisista, mostrando como a macieza da pele animal se entranha na doçura da sua própria epiderme. O tacto sensual, o porte altivo, a esfíngica inexpressão do olhar e a configuração afunilada do casaco trepando pela face dão à figura um ar inacessível e vagamente andrógino. Garbo pertence a uma fase de transição do cinema (do mudo para o sonoro, da moral vitoriana para a ética hedonista) em que o sentimento amoroso, tanto no écran como na adoração do público pelas estrelas, se redimia através da espiritualização espectacular do afecto fundeado no rosto. Garbo foi o ponto mais alto dessa devoção quase mística, ora assexuada ora ambivalente, que lhe mereceu, justamente, o epíteto de divina. O rosto de Garbo - lembra Barthes nas Mitologias - "representa esse momento frágil em que o cinema vai extrair de uma beleza essencial uma beleza existencial" e em que "a claridade das essências carnais vai dar lugar a uma lírica da mulher". A essa capacidade que o cinema tem de extrair de um rosto um ideal de beleza chamou Delluc fotogenia. No período em que a sensibilidade das emulsões exigia uma forte iluminação dos locais de filmagem, dizia-se que era fotogénico o rosto que aderia bem à claridade intensa sem precisar de filtros nem de maneirismos fotográficos. A fotogenia é uma arte absolutamente depurada de olhar as pessoas e os objectos, sem os artifícios do claro-escuro e da contraluz, e de os revelar no movimento do filme no que têm de mais imperceptível à vista desarmada. Garbo é a fotogenia no seu estado conceptual.

[Eduardo Geada - O cinema espetáculo]