16.8.08

[Dos grandes pensadores]

[Friedrich Nietzsche 1844-1900]

Alguém, no final do século XIX, tem nítida noção daquilo que os poetas de épocas fortes chamavam inspiração? Se não, eu o descreverei. - Havendo o menor resquício de superstição dentro de si, dificilmente se saberia afastar a idéia de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero medium de forças poderosíssimas. A noção de revelação, no sentido de que subitamente, com inefável certeza e sutilieza, algo se torna visível, audível, algo que comove e transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato. Ouve-se, não se procura; toma-se, não se pergunta quem dá; um pensamento reluz como relâmpago, com necessidade, sem hesitação na forma - jamais tive opção. Um êxtase cuja tremenda tensão desata-se por vezes em torrente de lágrimas, no qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta; um completo estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos pés; um abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como contrário, mas como algo condicionado, exigido, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz, um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas - a longitude, a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência de inspiração, uma espécie de compensação para sua pressão e tensão... Tudo ocorre de modo sumamente involuntáiro, mas como que em um turbilhão de sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder, de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo, é o mais notável; já não se tem noção do que é imagem, mais correta, mais simples expressão. Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se as coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos ( - "aqui todas as coisas vêm ofegantes ao encontro da tua palavra, e te lisonjeiam: pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo cavalgas aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e arcas de palavras de todo o ser; todo o ser quer vir a ser palavra, todo o vir a ser quer contido aprender a falar" - ). Esta é a minha experiência da inspiração; não duvido que seja preciso retroceder milênios para encontrar alguém que me possa dizer: "é também a minha". -

[NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pg. 85-86]