6.11.09

da contemporaneidade

[Tarsila do Amaral, 1925]

o bom marido


Sob a mesa, seus joelhos se tocavam. O homem olhou a boca muito próxima - cereja fresca. Inclinou-se na direção da mulher e beijou seus lábios. Ela consentiu por um instante muito pequeno. Quando ele esboçou abrir a boca e passar a língua entre seus dentes, ela já havia se afastado e virado o rosto com uma expressão de desagrado.
- Por que você fez isso?
- Por quê? Porque me deu vontade.
- Você não devia.
- Por que não?
- Porque eu mal conheço você, porque você é casado, tem uma família.
- Olha, querida, nós levamos duas horas pra tomar uma xícara de café. E, assim mesmo, sobrou um pouco.
- Eu nem sei por que aceitei tomar este café com você...
- Você sabe sim.
- Tá bem, eu sei.
Ela baixou o olhar. Ele segurou sua mão. Estava suada.
- Agora, tenho de ir - disse ela, recolhendo a mão. - Por que você não vai pra casa? Vai ficar com sua família, vai.
A mulher levantou-se com uma certa indecisão, pegou a bolsa, disse tchau e saiu devagar.
O homem ficou observando ela serpentear entre as mesas. Ao chegar à porta do bar, deteve-se, voltou-se para ele e sorriu - como se lhe concedesse uma chance a mais.
Ele pensou: "O que é uma família comparada a isto?". E foi atrás dela.

[MANTELLI, Fernando. Raiva nos raios de sol. Porto Alegre: Não Editora, 2008. p. 11-12]