19.11.09

descanonizando

[ei-lo: o homem que vai do rapapé à riqueza]


[...]



O narrador provém de uma família de latifundiários e donos de escravos: automaticamente é o dono da palavra. O seu direito não é questionado. Ele é o senhor do dinheiro, dos destinos, do discurso. Embora se procure, atendendo a recomendações da teoria literária, não confundir o autor com o narrador e a postura de um com a posição do outro, o fato de Machado não desmontar a fala senhorial é algo que pode levar o establishment a tentar provar o contrário. Este exige que o escritor seja visto como supraclasse e porta-voz de todos, para que melhor se repasse a ideologia e a postura política postuladas em sua obra. Não se pode separar um do outro, como se nada tivessem entre si. Aí se mostra de modo representativo o gesto semântico do cânone brasileiro, a sua coesa perspectiva senhorial. Não é um momento ocasional de um romance, mas condição também para a obra ser consagrada, ser ensinada nas escolas como grande literatura: é amostra de uma estrutura judicativa. Aqui se tem uma convergência do autor com o narrador. O próprio Machado - assim como os narradores por ele criados - não negou que queria fazer parte da elite oligárquica. Pelo contrário, dedicou a sua vida a isso.

[KOTHE, Flávio R. O cânone imperial. UNB, 2000.
p. 473]