15.7.14

Todo maldito santo dia


O trabalho ocupa todo o seu tempo / Hora extra é necessário pro alimento / Uns reais a mais no salário / Esmola de patrão cuzão milionário / Ser escravo do dinheiro é isso, fulano / Trezentos e sessenta e cinco  / dias por ano sem plano / Se a escravidão acabar pra você / Vai viver de quem? Vai viver de quê?


 – Racionais MC’s –



Sempre que inicio a tessitura de uma resenha – faz tempo que não mexo neste gênero – me preocupo em não desapontar a leitura dos livros de ficção dos escritores contemporâneos. Comentar, por mínimo que seja, é difícil.

Paulino Júnior, por exemplo, mostra-se um grande escritor em sua obra de estreia Todo maldito santo dia. O conjunto dos contos prova o olhar atento e questionador para os problemas do mundo do trabalho no mundo capitalista.

A realidade apresenta pontas para ligar a ficção: os contos fogem a qualquer realismo mágico. O realismo de Paulino é calcado na dialética do concreto. A vida, para repetir um poeta, está retratada sem mistificação. Na selva urbana, por exemplo, assassinos com fórum privilegiado são absolvidos de seus crimes. Personagens que necessitam de remédio para trabalhar. Zumbis narradores: dopados, anestesiados. Pedófilos. A alienação é um problema no universo narrativo do contista que me leva a deduzir, numa primeira instância, que o narrador está “cotado” à prisão dos aplausos.

As linhas tortas do escritor apresentam um mundo cão. Sem plumas. Explico: as investigações discursivas contestam o mundo administrado e vigiado. Tem voz ativa. Plurissignifica todas as nossas indignações.

O mundo do trabalho, “dos horários embrutecidos / pelos carrascos ponteiros do relógio” – pra não esquecer A ditadura do relógio de George Woodcock via Garotos Podres – percorre in infinitum a servidão moderna. Os universos perturbados por uma normalidade não tão normal têm seus terrores nas entrelinhas. A moderna escravização cheira hambúrguer. Perder seu dedo num trampo de fast-food, ser uma mercadoria na sociedade do espetáculo, engolir coisas contra a sua vontade são regras sem exceções. Tudo parece estar à venda. E nada fica na efemeridade terrível da modernidade. Resta-nos o vazio ensacado em forma de amargura, tristeza, solidão nesta constelação plástica das videoaulas, da competitividade, das trapaças, enfim, disso que podemos nomear de um mundo administrado por uma “consciência de vitrine”. Maldito mundo disciplinado.

Assim são os vinte contos de Paulino Júnior.

Grosso modo, no bojo de uma apresentação, nota-se a ausência do que poderíamos chamar de “realidade orgânica”, ausência esta que faz perder a personalidade. E é por esse viés que caminham os personagens dos contos. Um deles, o capitalismo o transformou em coisa.

A “consciência de vitrine”, para retomarmos o conceito, condiciona o sujeito a ser mais um empregado, onde, alegoricamente, a empresa pode ser a cidade, o estado, o país. A placa de “funcionário do mês” é mero deboche.

Paulo Leminski intitulou um de seus livros de Distraídos venceremos. Em um mundo distópico e, paradoxalmente, muito real como o dos contos de Paulino Júnior, podemos apreender que distraídos não venceremos, seremos esmagados. Torturados. Vilipendiados pelo tempo perdido onde os personagens escravizados atuam no palco de suas ficções sociais: “o grotesco mais sutil da farsa”.