5.9.14

o anjo exterminador

[Mon oncle | 1958]


Em 1992 houve um plebiscito em Amsterdã. Os habitantes da cidade holandesa resolveram reduzir pela metade o espaço, já muito limitado, que ocupam os automóveis. Três anos depois se proibiu o trânsito de carros particulares em todo o centro da cidade italiana de Florença, proibição que se estenderá para a cidade inteira a medida que se multipliquem os bondes, as linhas de metrô, os calçadões e os ônibus. Também as ciclovias: logo se poderá atravessar toda a cidade sem riscos, por qualquer parte, pedalando num meio de transporte que custa pouco, não gasta nada, não invade o espaço humano nem envenena o ar, e que foi inventado, ha cinco séculos, por um vizinho de Florença chamado Leonardo da Vinci.

Enquanto isso, um informe oficial confirmava que os automóveis ocupam um espaço bastante maior que as pessoas na cidade norte-americana de Los Angeles, mas ali ninguém pensa em cometer o sacrilégio de expulsar os invasores. 

O direito de matar

Um único país, a Alemanha, tem mais automóveis que a soma de todos os países da América Latina e da África. Entretanto, no sul do mundo morrem três de cada quatro mortos nos acidentes de trânsito de todo o planeta. E dos três que morrem, dois são pedestres.

Nisso, pelo menos, a publicidade não mente, que costuma comparar o carro com uma arma: acelerar é como disparar, proporciona o mesmo prazer e o mesmo poder. A caçada dos pedestres é freqüente em algumas das grandes cidades latino-americanas, onde a couraça de quatro rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se mandassem. E nestes últimos tempos, tempos de crescente insegurança, aos impunes valentões do trânsito acrescenta-se o medo dos assaltos e dos seqüestros. Cada vez há mais gente disposta a matar quem se atravessar na sua frente. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no acelerador para atropelar a realidade ou para fugir dela, e a realidade é uma coisa muito perigosa que acontece do outro lado das janelas fechadas do automóvel.

Eduardo Galeano | Brecha
1996