Em 1992 houve um plebiscito em Amsterdã. Os
habitantes da cidade holandesa resolveram reduzir pela metade o espaço, já
muito limitado, que ocupam os automóveis. Três anos depois se proibiu o
trânsito de carros particulares em todo o centro da cidade italiana de
Florença, proibição que se estenderá para a cidade inteira a medida que se
multipliquem os bondes, as linhas de metrô, os calçadões e os ônibus. Também as
ciclovias: logo se poderá atravessar toda a cidade sem riscos, por qualquer
parte, pedalando num meio de transporte que custa pouco, não gasta nada, não
invade o espaço humano nem envenena o ar, e que foi inventado, ha cinco
séculos, por um vizinho de Florença chamado Leonardo da Vinci.
Enquanto isso, um informe oficial
confirmava que os automóveis ocupam um espaço bastante maior que as pessoas na
cidade norte-americana de Los Angeles, mas ali ninguém pensa em cometer o
sacrilégio de expulsar os invasores.
O
direito de matar
Um único país, a Alemanha, tem
mais automóveis que a soma de todos os países da América Latina e da África.
Entretanto, no sul do mundo morrem três de cada quatro mortos nos acidentes de
trânsito de todo o planeta. E dos três que morrem, dois são pedestres.
Nisso, pelo menos, a publicidade
não mente, que costuma comparar o carro com uma arma: acelerar é como disparar,
proporciona o mesmo prazer e o mesmo poder. A caçada dos pedestres é freqüente
em algumas das grandes cidades latino-americanas, onde a couraça de quatro
rodas estimula a tradicional prepotência dos que mandam e dos que agem como se
mandassem. E nestes últimos tempos, tempos de crescente insegurança, aos
impunes valentões do trânsito acrescenta-se o medo dos assaltos e dos
seqüestros. Cada vez há mais gente disposta a matar quem se atravessar na sua
frente. As minorias privilegiadas, condenadas ao medo perpétuo, pisam no
acelerador para atropelar a realidade ou para fugir dela, e a realidade é uma
coisa muito perigosa que acontece do outro lado das janelas fechadas do
automóvel.
Eduardo Galeano | Brecha
1996