10.1.17

por que existe a literatura e não o nada


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Como na arte, a literatura opera com base em prólogos, na iminência, quando o social é acontecimento mais do que estrutura, onde escrever e ler apresentam um status diferente dos atos sociais corriqueiros. É um modo de fazer que trabalha na zona do indeciso, do irresoluto, daquilo que ainda é possível.

Há arte e literatura onde não se afirma categoricamente aquilo que é e onde também não se assiste ao simples desapossamento do nada. O artístico e o literário existem enquanto aquilo que é aparece com o nada e onde o nada se mostra com o que pode ser. Fazer arte ou escrever é algo que acontece quando se evitam declarações absolutas e também quando o criador não se abandona totalmente à vertigem do nada. Chega-se a ser artista e escritor aprendendo a tratar com o que é, como se pudesse não ser, e com o que não é, como se pudesse vir a ser. Como ator social, o escritor é aquele que não pertence inteiramente à sua etnia, nação ou língua, transita entre pertencimentos frágeis, vive em seu entorno como estrangeiro, fala, mas duvida do que diz.

A cena da literatura não é a realidade social estruturada, empiricamente observável, nem a do nada que antecede o real. Mas essa experiência do iminente, em que ocorre o acontecimento literário, rastreável também na arte e na literatura de outras épocas, mostra mudanças históricas. O ato de escrever é um movimento aparentemente solitário, mas que pode ser enunciado como dificuldade de sobrevivência em certas ocasiões, luta pela significação em outras, vertigem diante do que desaparece.

Néstor G. Canclini