6.6.17

entre operários

(DIÁLOGO)

- Então, agora que somos livres, explica-me por que, além de seres anarquista, tu és também comunista e ateu... Quero que me digas tudo: pois que, francamente, também eu começo a perceber que vós anarquistas tendes muita razão, como resulta claramente dos jornais que me deste para ler. Não posso, porém, compreender por que não se pode ser anarquista sendo católico ou crente em Deus... Explica-me, então, isto que tu chamas "contradição".

- Antes de tudo; faze-me rir quando dizes: "agora que somos livres"- Livres? Porque o patrão da fábrica concede às bestas de carga, que somos nós, apenas pouco minutos para irmos comer um prato de comida no hotel? Comida é modo de dizer, pois que nem mesmo os cães deveriam comer semelhante substância composta de gêneros deteriorados, por ironia chamados alimentícios, e por remate malcozidos e condimentados com banha apócrifa, vinagre tingido com anilina e azeite fedorento; ingredientes que nos estragam o estômago e depauperam o organismo já exausto pelo excessivo trabalho... Ah! não! nós não somos livres... somos escravos ou cousa pior! Meu caro, a escravidão mudou de nome mas não de fato; e tu podes convencer-te de que és livre... de fazer-te explorar pelos patrões... ou senão - de morrer de fome.

- Tens razão, exprimi-me mal; mas, por favor, dize-me quanto te pedi, pois que desejo instruir-me nessas ideias que tu dizes hão de emancipar-nos.

- Com muito prazer procurarei dar-te alguma explicação. Deves saber que nós anarquistas somos também comunistas e ateus; isto é, não acreditamos nem em Deus do céu - nem em Deus da terra; e sim somente na nossa existência aplicada ao trabalho útil de todos os homens em benefício de todos, que é o ato mais sublime, mais social: a solidariedade - que posta em prática com a atuação dos verdadeiros princípios anárquicos seria a felicidade de todo o gênero humano.

Em suma, para não irmos mais longe, em governo - ou melhor, em política - somos anarquistas; em propriedade - isto é, em economia - comunistas; em religião, ateus.

- Isto mesmo é que desejo que tu me expliques...

- É quanto vou fazer...

Somos anarquistas porque queremos que cada homem (e dizendo homem incluímos também a mulher, pois que nós queremos a igualdade para todos, homens e mulheres) pense com a sua cabeça, obre segundo a sua vontade, e que ninguém se imponha nem tampouco suporte imposições de parte do outro. Em poucas palavras: não queremos governo, porque quem diz governo diz autoridade, tirania, despotismo, exploração, etc. Assim, para explicar-me melhor, devo dizer que não combatemos o imperador A ou o rei B, ou o presidente C, ou o ministro X - mas sim combatemos o princípio da autoridade encarnado no sistema, isto é, na forma de governo; pois que, como diz um rifão: o barril não pode dar senão o vinho que o contém. Assim, para nós, o governo sob qualquer forma exteriorizado - seja ainda encapotado à socialista - é a "fraude"! E o princípio de autoridade é antinatural - é contra a razão, a justiça e a natureza...

Somos comunistas, porque o princípio da propriedade como hoje existe - a propriedade individual - permite a um homem explorar outro homem. Prova: tu és pobre, o teu patrão - ou melhor, o patrão da fábrica, pois que nem os cavalos nem os cães deviam ter patrão e muito menos os homens do século XX, este deslumbrante século pomposamente chamado de luz e de progresso - o patrão da fábrica onde tu trabalha é rico. Mas por que é rico? Porque ele, protegido pelas leis por ele mesmo feitas, se apropria do trabalho dos miseráveis que, constrangidos pela fome, se fazem explorar. Por que és pobre?... porque, não possuindo os meios de trabalho, não podes trabalhar livremente por tua conta ou associado com os outros trabalhadores da tua profissão, e és constrangido por isso a vender, por um miserável prato de feijão, a tua força de trabalho! E vê a contradição: tu que trabalhas e produzes és pobre; o patrão que não trabalha e não produz é rico! E depois acredita nos livros, na Economia Política - o evangelho burguês - que dizem que a riqueza é fruto do trabalho!

- Sim... do trabalho alheio...

- Bravo! Assim mesmo: a riqueza é o fruto do trabalho... alheio. E é isto que nós não queremos, por isso que somos comunistas, isto é, queremos que a propriedade seja comum. Que todos trabalhem e que todos possam gozar dos produtos do trabalho comum, e que não suceda, como agora, que só uma parte da humanidade seja condenada a um trabalho forçado, enquanto uma minoria privilegiada apodrece no ócio e na abundância, quando milhões de seres sofrem todos os martírios de uma miséria sem nome.

- É verdade, é injusto, é infame tudo isso, e considero-me partidário vosso nesse ponto; não sei porém por que não concordais com a religião...

- Outra vez com a religião? Tu tens uma ideia fixa sobre esse ponto,e compadeço-me de ti porque o teu cérebro, se não foi completamente atrofiado pelos padres, católicos ou protestantes, não tardará muito a sê-lo, se tu continuares a frequentar as igrejas.

Posto isto, digo-te: somos ateus porque cremos que as religiões pervertem os espíritos, tornando o homem um dócil instrumento passivo neste mundo, deixando-se explorar, mandar, e dominar só porque os padres dizem que Deus criou o mundo assim, e, portanto, é crime revoltar-se contra a vontade de Deus. Resultado: suportar com resignação todos os sofrimentos neste mundo para depois de mortos... Deus nos acolher no céu! Mas tu poderias perguntar-te: quem voltou depois de morto para nos dizer que tudo isto é verdade? Entretanto, nós sofremos o inferno nesta vida, e os ricos gozam o paraíso neste vale de lágrimas vivendo no luxo e na abundância. Caro amigo, deixa de ser ingênuo até o ponto de acreditar em tolices.

- Sim, mas tu não admites que exista Deus?

- Como deveria admiti-lo, quando ele não se deixa ver? Tu és muito curioso quando falas: admitir não é provar que uma coisa existe. Mas admitindo mesmo que esse teu Deus exista: então, é ele bom ou mau? Se é bom, por que permite tantas injustiças? Se as permite, então é um Deus mau? Reflete bem, meu amigo, como é absurdo tudo isto, e depois contradize-me, se tens razões. Não quero aqui entrar em particularidades para demonstrar-te o absurdo da existência de um Deus que só existe na mente dos insensatos e dos interessados, para que estes possam com mais facilidades explorar aqueles. Falta-me o tempo para isso, e melhor poderás fazê-lo tu mesmo, pois que te darei a ler um livrinho que explica largamente este assunto. Só te digo que olhes a tua triste posição e a de tantos milhões de operários consumidos nos sofrimentos penosos do trabalho escravo e nas garras de uma miséria eterna - eles, suas famílias e seus filhinhos - e compare-a com o fausto dos ricos; e depois dize-me se isto é justo, e se o teu Deus que fecha os olhos não é cúmplice interessado em tais iniquidades.

Em suma, por isto, nós não cremos em Deus, nem no filho, nem no espírito santo, nem na... mãe que os pariu todos!... Compreendeste?...

- Compreendi, sim, e com muito prazer vou ler esse livro que tu me prometes para melhor esclarecer o meu cérebro sobre um assunto tão importante... 

- Pois bem, agora não temos mais tempo para conversar porque a máquina já deu sinal para os carneiros irem deixar-se tosquiar pelo patrão. Outra vez, te explicarei o que é a anarquia, ou melhor, a sociedade futura... Até outro dia, pois.

- Até logo...

Guglielmo Marroco
O amigo do Povo, SP, ano I, n. 6
21 de junho de 1902