1.6.17

na cretinolândia

Lanceta
Guerra Sociale, SP, ano III, n. 57
26 agosto 1917

Houve, não era muito remota, um povo que habitava um magnífico e resplandecente país. A vegetação luxuriante que cobria eternamente grande parte desse verdadeiro Éden atestava de uma maneira cabal que a fartura existia nessas paragens; era essa, pelo menos, a impressão que tinha o viandante que bordejasse em algum navio a imensa costa desse grande país, que tinha uma superfície de mais de oito milhões de quilômetros quadrados e era habitado por uma população de vinte e cinco milhões de almas.

Todo esse bom conceito, porém, se desvanecia como fumo, assim que o viajor pisava em terra. Nesse país existia a fome tantálica, uma espécie de fome que não se encontrava em outras regiões porque os naturais morriam à mingua em frente dos armazéns abarrotados de comestíveis.

Nos cia se apinhavam sacas e sacas de açúcar, de feijão e de outros gêneros alimentícios, que eram exportados para o estrangeiro por um preço baratíssimo. Dentro do país esses mesmos gêneros custavam três vezes mais do que o preço por que eram vendidos para o estrangeiro. Enfim, o que se passava nessa região privilegiada do globo era fantástico, absurdo, inconcebível.

Mas o mais interessante era a organização social desse povo. O sistema que o regia era o democrático (o governo do povo pelo povo), mas o povo só era soberano para apanhar grossa pancadaria, quando por acaso, o que sucedia raras vezes, protestava contra as iniquidades dos governantes. Tinha muitas leis, leis sábias, entre elas duas de grande importância, a lei da rolha e a lei dos dois pesos e duas medidas. A liberdade só existia para certas castas do país, sendo-lhes permitida a liberdade de avançarem no erário público e de roubarem votos para serem eleitas pais da pátria, uma espécie de dignidade, muito pouco digna por sinal, em que se aquinhoavam alguns contos de réis, a título de subsídio, apenas com a condição de os eleitos dizerem que não havia fome no país.

Os parasitas neste país de que vimos falando eram aos milhares, que se dividiam em diversas classes: empregados públicos, senadores, deputados, oficiais de diversas cousas e loisas. Os empregados públicos, por patriotismo, não trabalhavam, iam para a repartição, faziam a lista do bicho, um jogo muito interessante e existente nessa região tão encantada quanto misteriosa.

O viajante de cujas memórias extraímos estes apontamentos, vendo tanta anormalidade, tanta burrice, tanta estupidez nos naturais desse país, que não se revoltavam contra tanta tirania, o crismou de Cretinolândia (o país dos cretinos).

Sempre existe e tem existido cada coisa por este mundo! É caso para perguntarmos aos nossos botões: mas por que não se revolta esse povo contra tanta infâmia, contra tanta injustiça acumulada?

Mas que mania tinha essa gente de deixar-se morrer à mingua em frente dos armazéns repletos de alimentos!

Hoje, em nenhum país que se preze de civilizado, tal aconteceria, porque o povo daria um assalto em forma aos tais armazéns e acabava por uma vez com os açambarcamentos que neste país a que nos vimos reportando, seguindo os apontamentos do viajante a que acima nos referimos, eram feitos por uma matula de desalmados comerciantes, que era quem na verdade governava essa nação, vivendo à la gordaça conluio com meia dúzia de patifes.

Mas os infelizes habitantes dessa região tinham sangue de barata nas veias! Que infelicidade!