11.9.23

O significado do 11 de setembro


1908 - 1973

Se a responsabilidade dos intelectuais se refere à sua responsabilidade moral como seres humanos decentes numa posição para usar seu privilégio e status a fim de dar impulso às causas de liberdade, justiça, misericórdia e paz – e para falar abertamente não apenas acerca dos abusos dos nossos inimigos, mas, de maneira muito mais significativa, dos crimes em que nós mesmos estamos envolvidos e os quais poderíamos aplacar e extinguir se assim escolhêssemos –, como deveríamos pensar no 11 de Setembro?

A noção de que o 11 de Setembro “mudou o mundo” é amplamente aceita e difundida, o que é compreensível. Os eventos daquele dia tiveram consequências de grande envergadura, nacional e internacional. Uma delas foi levar o presidente Bush a declarar novamente a guerra de Reagan contra o terrorismo – a primeira guerra ao terror havia efetivamente “desaparecido”, para tomar de empréstimo a expressão dos nossos assassinos e torturadores latino-americanos favoritos, provavelmente porque seus resultados não combinavam muito bem com a nossa autoimagem preferida. Outra consequência foi a invasão do Afeganistão, depois a invasão do Iraque e as intervenções militares mais recentes em diversos outros países na região, bem como ameaças regulares de ataques ao Irã (“todas as opções estão em aberto”, na frase padrão). Os custos, em todas as dimensões, têm sido enormes. Isso sugere uma pergunta bastante óbvia, e que não é formulada aqui pela primeira vez: havia uma alternativa?

Inúmeros analistas observaram que Bin Laden obteve enormes êxitos em sua guerra contra os Estados Unidos. “Ele afirmou repetidamente que a única maneira de expulsar os EUA do mundo islâmico e derrotar seus sátrapas era arrastar os norte-americanos para uma série de pequenas mais dispendiosas guerras que, ao fim e ao cabo, os arruinaria e os levaria à bancarrota”, escreve o jornalista Eric Margolis. “Os Estados Unidos, primeiro sob George W. Bush e depois Barack Obama, precipitaram-se diretamente na armadilha de Bin Laden [...] Orçamentos e gastos militares grotescamente inchados e o vício compulsivo em dívidas [...] talvez sejam o mais pernicioso legado do homem que julgou ser capaz de derrotar os Estados Unidos. Um relatório do projeto Custos de guerra do Instituto Watson para estudos internacionais e públicos da Universidade Brown estima que a conta final será de 3,2 a 4 trilhões de dólares. Um efeito impressionante de Bin Laden.

Que Washington tinha toda a resoluta intenção de cair na armadilha de Bin Laden logo ficou evidente. Michael Scheuer, o analista sênior da CIA responsável por perseguir e rastrear os passos de Bin Laden de 1996 a 1999, escreveu que “Bin Laden, com precisão cirúrgica, mostrou aos Estados Unidos as razões pelas quais está desencadeando sua guerra contra nós”. O líder da al-Qaeda, continuou Scheuer, estava “determinado a alterar de forma drástica as políticas dos EUA e do Ocidente em relação ao mundo islâmico”.

E, conforme explica Scheuer, Bin Laden foi muito bem-sucedido. “As forças e as políticas dos EUA estão completando a radicalização do mundo islâmico, algo que Osama bin Laden vem tentando fazer com sucesso substancial, porém incompleto, desde o início dos anos 1990. O resultado, parece-me justo concluir, é que os Estados Unidos da América continuam a ser o único aliado indispensável de Bin Laden”. E possivelmente continuam a sê-lo, mesmo após a morte do líder da Al-Qaeda.

Existem bons motivos para acreditar que o movimento juhadista pudesse ter sido dividido e minado após o 11 de Setembro, que recebeu severas críticas dentro do próprio movimento. Além disso, o “crime contra a humanidade”, como foi corretamente rotulado, poderia ter sido tratado como um crime, com uma operação internacional para capturar os presumíveis suspeitos. Essa ideia foi aceita logo após o ataque, mas a sua execução nem sequer foi cogitada pelos tomadores de decisões em Washington. Parece que não se levou a séria a oferta provisória feita pelo Talibã – ainda que não tenhamos como avaliar o grau de seriedade dessa oferta – de apresentar os líderes da al-Qaeda para que fossem submetidos a um processo judicial.

À época, citei a conclusão de Robert Fisk de que o horrendo crime de 11 de Setembro foi cometido com “maldade e crueldade impressionantes” – um juízo exato. Os crimes poderiam ter sido ainda piores: suponhamos, por exemplo, que o voo 93, derrubado por corajosos passageiros na Pensilvânia, tivesse ido tão longe a ponto de atingir a Casa Branca, matando o presidente? Suponhamos que os criminosos planejassem e lograssem impor uma ditadura militar que matasse milhares e torturasse dezenas de milhares. Suponhamos que a nova ditadura estabelecesse, com o apoio dos criminosos, um centro de terror internacional que ajudasse a instalar em outros países regimes de tortura e terror similares e, a cereja do bolo, trouxesse uma equipe de economistas – vamos chamá-los de “os meninos de Kandahar” – que rapidamente conduzisse a economia a uma das piores depressões de sua história. Claramente, isso teria sido muito pior do que o 11 de Setembro.

Como todos deveríamos saber, nada disso é um experimento mental ou mera especulação. Aconteceu. Refiro-me, naturalmente, à quilo que na América Latina é muitas vezes chamado de “o primeiro 11 de Setembro”: o dia 11 de Setembro de 1973, quando os Estados Unidos tiveram êxito em seus esforços para derrubar o governo democrático de Salvador Allende no Chile com um golpe militar que levou ao poder o terrível regime do general Augusto Pinochet. A seguir, a ditadura instalou seus meninos de Chicago –para remodelar a economia do país. Pense na destruição econômica, na tortura e nos sequestros, e multiplique 25 os números de mortos para produzir equivalentes per capita, e você simplesmente verá como foi muito mais devastador o primeiro 11 de Setembro.

O objetivo do golpe, nas palavras da administração Nixon, era matar o “vírus” que poderia encorajar todos esses “estrangeiros [que] estão a fim de foder com a gente” – foder com a gente era tentar assumir o controle de seus próprios recursos e, em termos mais gerais, aplicar uma política de desenvolvimento independente, numa diretriz que causava repulsa em Washington. Em segundo plano, apoiando a decisão do golpe, estava a conclusão do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council – NSC, na sigla em inglês) de Nixom de que, se os EUA não eram capazes de controlar a América Latina, não se podia esperar que conseguissem “realizar a sua ordem auspiciosa em qualquer outro lugar no mundo”. A “credibilidade” de Washington seria solapada, na definição de Henry Kissinger.

O primeiro 11 de Setembro, ao contrário do segundo, não mudou o mundo. Não foi “nada de grandes consequências”, conforme assegurou Kissinger ao seu chefe pouco dias depois. A julgar como esse evento figura na história convencional, é difícil apontar alguma imprecisão nas palavras de Kissinger, embora os sobreviventes talvez pensem de forma diferente.

Esses eventos de poucas consequências não se limitaram ao golpe militar que destruiu a democracia chilena e pôs em movimento a história de horror que se seguiu. Como já discutido, o primeiro 11 de Setembro foi apenas um ato de um drama que teve início em 1962, quando Kennedy alterou a missão das Forças Armadas da América Latina para “segurança interna”. Os sinistros resultados também são de pouca importância, o padrão familiar quando a história é guardada e protegida por intelectuais responsáveis.

Noam Chomsky
Trad.: Renato Marques