20.10.17

para ler o pato donald

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Ninguém trabalha para produzir no mundo de Disney. Todos compram, todos vendem, todos consomem, mas nenhum destes produtos custou, ao aparecer, esforço algum. A grande força de trabalho é a natureza, que produz objetos humanos e sociais como se fossem naturais.

A origem humana do produto: da mesa, da casa, do automóvel, do vestuário, do ouro, do café, do trigo e milho (que vêm dos celeiros, direto dos armazéns e não dos campos.) foi suprimida. O processo de produção desapareceu e toda a referência a uma gênese também: os atores, objetos e acontecimentos do processo jamais existiram. O que se substituiu de fato foi a paternidade do objeto, a possibilidade de liga-lo à sua energia criadora. Aqui é preciso voltar a essa interessante estrutura em que o pai da criança se ausentava. A simetria entre a falta de produção biológica direta e a falta de produção econômica não pode ser casual e deve ser entendida como uma estrutura paralela única que obedece à eliminação deste mundo do proletariado, o verdadeiro gerador dos objetos ou, nas palavras de Gramsci, o elemento viril da história, da luta de classes e do antagonismo de interesses.

Disney exorciza a história: magicamente expele o elemento reprodutor social (e biológico) e fica com seus produtos amorfos, desoriginados e inofensivos; sem suor, sem sangue, sem esforço, sem a miséria que estes produtos criam ineludivelmente na classe proletária. O objeto é na verdade fantástico: não há para que imaginar o desagradável, que acaba relegado ao cotidiano sujo e aos barros marginais.

O imaginário infantil serve a Disney para cercear toda a referência à realidade concreta. Os produtos históricos povoam e enchem o mundo de Disney, são aí vendidos e comprados incessantemente. Disney se apropriou, entretanto, desses produtos e, portanto, do trabalho que os gerou, repetindo o que a burguesia tem feito com a força de trabalho do proletariado. É um mundo ideal para a burguesia; permanece com os objetos e sem os operários, a tal ponto que quando aparece em raras ocasiões uma fábrica (cervejaria), nunca há mais de um trabalhador que geralmente aparece como zelador. É como se fosse apenas um agente policial, o protetor da fabricação autônoma e autômata de seu patrão. É o mundo que sempre sonharam, acumular a riqueza sem enfrentar seu resultado: o proletariado. Eximiram de culpa os objetos. É um mundo de pura mais-valia sem um operário, por menor que fosse, ao qual se pudesse dar uma mínima retribuição. O proletariado que nasce, como fruto das contradições do regime da classe burguesa, como força de trabalho “livre” para se vender ao melhor pagador, que transforma esta força em riqueza para sua própria classe social, é expulso deste mundo que ele criou, e com ele cessa todo o antagonismo, toda luta de classes e contradições de interesse e, portanto, toda a classe social. O mundo de Disney é o mundo dos interesses da burguesia sem suas deslocações, cada uma das quais tem sido reiteradamente encoberta. Disney, em seu reino da fantasia, levou ao auge o sonho publicitário e rosado da burguesia: riquezas sem salários, dólares sem suor do rosto. O ouro é um joguete, e por isso aparecem tão simpáticos esses personagens: porque na realidade, tal como está disposto no mundo, não causam dano a ninguém... dentro desse mundo. O dano consiste em sonhar o sonho particular de uma classe como se fosse o de toda a humanidade.

O único termo que faria saltar o mundo de Disney como um sapo com uma descarga elétrica, como o escapulário a um vampiro, é a palavra classe social. Disney precisa apresentar, por isso, sua criação como universal, sem fronteiras; chega a todos os lugares, a todos os países, o imortal Disney, patrimônio internacional de todas as crianças, todas, todas, todas.

Ao processo que aparta o produto (trabalho acumulado) de sua origem e o expressa em ouro, abstraindo-o das condições reais com homens concretos que presidiram sua produção, Marx chama de fetichismo. 

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O universo de Disney é uma prova da coerência interna do mundo arregimentado por este outro, e resulta assim numa réplica calcada neste projeto político. 

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No mundo de Disney dos polos do processo capitalista produção-consumo só está presente o segundo. E o consumo perdeu o pecado original da produção, tal como o filho perdeu o pecado original que representava seu pai, tal como a história perdeu o pecado original da classe e portanto da troca.

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O ato que os personagens estão repetindo a todo o momento é o da compra. Esta relação mercantil não se modela apenas no nível dos objetos. A linguagem contratual domina o trato humano mais cotidiano. As pessoas se veem comprando os serviços de outro ou vendendo a si mesmo. É como se não tivessem segurança senão por meio das formas linguísticas monetárias. Todo o intercâmbio humano toma a forma mercantil. Todos os seres deste mundo são uma bilheteria ou um objeto detrás de uma vitrina, assim são todos moedas que se movem incessantemente. 

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Vive-se neste mundo de Walt, em que cada palavra é a publicidade de uma coisa ou de um personagem, a compulsão do consumo intenso. 

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A solidariedade dentro desse mundo é intromissão. 
Não podemos entender como esta obsessão pela compra pode fazer bem a uma criança, a quem subrepticiamente se impõe a lei de consumir e continuar consumindo, sem que os artefatos façam falta. Esse é o único código ético de Disney: comprar para que o sistema se mantenha, jogar fora os objetos (porque nunca se os aproveita dentro da história em quadrinhos) e comprar os mesmos objetos, levemente diferenciados, amanhã. Que circule o dinheiro e que vá ao bolso da classe da qual Disney é membro e engrosse seu próprio.

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Disney é o carrossel do consumo. O dinheiro é o fim último a que tendem os personagens porque concentra em si todas as qualidades do mundo.

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O verdadeiro rival do dono das riquezas não é o ladrão. Queria ele que só houvesse ladrões cercando-o para converter a história numa luta entre proprietários legítimos e delinquentes, que seriam julgados segundo a lei da propriedade que ele mesmo estabeleceu. Mas não é assim. Quem de verdade pode destruir esse monopólio, e questionar de verdade sua legitimidade e sua necessidade, é o proletariado, cuja única via de libertação é terminar com as bases da economia burguesa e abolir a propriedade privada. Desde os albores da oposição burguesia-proletariado, esta quis reduzir toda ameaça de seu adversário explorado, e portanto da luta de classes, a uma luta entre bons e maus, como provou Marx analisando os folhetins de Eugéne Sue na “A Sagrada Família”.

Esta etiqueta moral encobre a diferença fundamental que é econômica e exerce o papel de censura das ações de uma classe.
O proletariado foi, para tanto, omitido: na cidade é criminoso, no campo é o selvagem bonzinho. Como a visão de Disney é emascular a violência e os conflitos sociais, inclusive malandros são enfocados como crianças travessas (na América Latina, os Irmão Metralha são “chicos malos”); como o antimodelo em que sempre perdem, recebem surras, celebram suas estúpidas ideias dando-se as mãos e dançando em rodas. Sua manada dispersa sintomatiza o desejo da burguesia de substituir o aglutinamento de quatro gatos loucos pelas organizações da classe operária. (Assim, quando Donald aparece como um possível bandido, a reação de Tio Patinhas: “Meu sobrinho, um assaltante? Diante de meus próprios olhos? Terei de chamar a polícia e o hospício. Deve ter enlouquecido”, é similar à redução de toda subversão política a uma enfermidade psicopática para apagar a solidariedade de classe que explica o fenômeno). Convertem os defeitos do proletariado, produto da exploração burguesa, em taras, objeto de riso e argúcias para não perturbar a exploração.Não lhes permite sequer serem originais em suas aspirações: a burguesia coloniza em última análise esses ladrões, impedindo-lhes as mesmas aspirações. Eles desejam o dinheiro para serem burgueses, para se converterem nos exploradores, e não para abolir a propriedade. A caricatura do proletariado, torcendo cada característica que poderia fazê-lo temível e digno e, portanto, identificá-lo como classe social, serve para oferecê-lo em público como um espetáculo de burla e escárnio. Paradoxalmente, na era da tecnologia do mundo que os burgueses chamam de moderno, a cultura massificada recorre e propala cotidianamente os mitos renovados da era da máquina. 

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O imaginário infantil, como projeto de Disney, permite apropriar-se de coordenadas reais e da angústia do homem atual, mas priva-os de sua denúncia, das contradições efetivas e das formas de superá-las. Justamente aqui radica a diferença entre o absurdo da novela contemporânea e o teatro, em que o homem-vítima vive a degradação contínua de seus limites e a flutuação expressiva da linguagem que o comunica, emascarando somente as causas ao propor uma humanidade metafísica, e o absurdo de Disney, em que a inocência encobre a perversidade indigna do sistema e o prêmio providencial reassegura à vítima que não deve questionar nem corroer os fundamentos de sua própria desgraça.

A literatura contemporânea mostra o homem dignificando-se no conhecimento abstrato e doloroso de sua própria alienação, e a imaginação procede muitas vezes ao indagar todo o sofrimento e a emoção que a sociedade atual quer perfumar com publicidade. [...] A destruição efetiva do mundo social que possibilita a Disney, e que o nutre de suas representações, é simultaneamente a liberação do trabalhador da cultura, que se integraria aos meios maciços de comunicação em uma nova sociedade.