7.11.17

censura-violência

1918-2017

A censura é uma forma eficaz e profunda de violência, e a violência se tornou em nosso tempo horizonte e limite. Não afundemos demais no lugar-comum, mas registremos o fato de que neste fim de século a sua penetração e a sua explosão fazem realmente pensar. sobretudo porque, ao contrário do que ocorreu noutras épocas e noutras civilizações, ninguém gosta de assumi-la francamente; os seus próprios autores e executantes não apenas a renegam ostensivamente, como a condenam. Haja vista na instância suprema os países ricos, que vendem armas aos outros, cultivam os pontos de conflito no mapa-múndi, mas não obstante lançam apelos veementes e patéticos a favor da paz.

Talvez isso venha desde sempre, pelo menos no Brasil, que é um país pacífico, sendo qualquer violência, no dizer das autoridades e respectivos ideólogos, “contrária à índole do nosso povo”.

Quando os homens da minha geração começaram a ler e aprender, reinava na educação caseira e escolar uma concepção tecida sutilmente de violência inculcada, mas logo negada, e que por isso mesmo se incrustava a fundo em nossa consciência burguesa. Esse padrão comportava o que se pode chamar um refinamento estético da violência, com o culto do penacho, do uniforme vistoso, do rompante heroico, do gesto marcial cristalizado no quadro ou na estátua, do movimento coreográfico das batalhas de museu – e uma insensibilidade coletiva em face da maioria esmagada pela miséria, vista como fato natural. Nós entrávamos por aí com soldadinhos de chumbo, espadas e capacetes de folha e a ideia de uma profunda nobreza da força. “Assim nos criam burgueses”, como diz o poeta.

Mas, ao mesmo tempo, impunha-se a ideia de um Brasil pacífico por natureza, cordato e generoso, inimigo desta mesma força, com uma história onde o sangue belicoso só corria derramado no campo da honra para defender o solo invadido ou ameaçado, dos holandeses aos paraguaios. Hoje as modas são outras entre os intelectuais, e talvez até se exagere a brutalidade da nossa história, que apenas não fica devendo nada à de outros países sob este aspecto. No entanto, creio que ainda predomina a velha barragem ideológica, mantida com uma pertinácia que chega a espantar, nessa era de violência desmascarada; e que decerto alcança com eficiência os seus fins mistificadores, como auto-sugestão consciente ou inconsciente.

Se não me engano, o primeiro historiador que mostrou a concatenação da violência na história republicana foi Edgard Carone, não faz muito tempo. Na sua obra, é impressionante a sucessão ininterrupta da ferocidade, numa cadeia de chacinas, conflitos sanguinolentos, intervenções armadas cheias de selvageria. Em outros historiadores isso tudo, quando aparecia, aparecia esbatido ou isolado, facilitando a ideologia da exceção lamentável. Não há dúvida de que a clava do hino nacional, se nem sempre foi justa, é invariavelmente forte. Seja como força física de compressão, seja como pressão sobre a inteligência e a criatividade, que é o caso da censura.

Violência física e violência mental são na verdade violência social, como fica mais evidente neste fim de século especialmente bruto. Ela é fruto da desigualdade econômica, que requer força para se manter, porque sem força a igualdade se imporia como solução melhor, que na verdade é. Hoje, é espantoso ouvir e ler os pronunciamentos das autoridades de todos os níveis, que falam com veemência crescente que a miséria do povo é intolerável, que a concentração da riqueza deve ser mitigada, que a pobreza é um mal a ser urgentemente superado – não raro com estatísticas demonstrativas. É espantoso, porque até pouco tempo tais afirmações eram consideradas coisa de subversivos; e é espantoso porque isso é dito, mas quem diz faz tudo para que as coisas fiquem como estão, e para que os que querem mudar sejam devidamente enquadrados pela força. Não há dúvida de que a censura funciona como retificação, como dolorosa ortopedia feita para lembrar aos incautos a obrigação de não passar da demagogia à luta real pela democracia. A ideia, a palavra, a imagem podem ser instrumentos perigosos aos olhos dos que desejam apenas escamotear, operando conscientemente no plano da ideologia para abafar a verdade. Censura, portanto, e censura como arma para formar com outras o arsenal de manutenção da desigualdade – econômica, política, social. Por isso, mais em nosso tempo do que em outros, nos quais eram menos variados e atuantes os meios de expressão, devemos estar cada vez mais preparados para lutar contra a violência dentro da qual vivemos em todos os níveis. Inclusive a censura.

Há certas expressões significativas: “O fato é homem e a palavra é mulher; um homem vale vinte mulheres”; ou: “Contra fato não há argumento”. Elas querem dizer que, diante da evidência do real, não cabem as argumentações abstratas em contrário, o que em princípio parece estar certo. Mas, na verdade, significam também coisas como “o que vale é a força” ou “ideia não resolve”. Assim, pregam o reconhecimento do fato consumado, a capitulação diante do que se impôs no terreno prático, negando o direito de discutir, de argumentar para mudar a realidade. E então se tornam sinistras.

Sob este aspecto, o papel do intelectual consiste em fazer o contrário do que tais expressões postulam. Em não aceitar o fato como necessidade inelutável, nem considerar inapelável a circunstância que o formou. Em 1973, instigados por Fernando Gasparian, alguns intelectuais se juntaram a ele para fundar uma revista, a que deram o nome de Argumento, para marcar o direito da razão em funcionar contra a força. Os tempos eram bem mais duros do que agora e a censura à imprensa era maciça. Por isso mesmo, a nossa decisão foi não aceitar o fato como inevitável, mas lutar na medida das forças para mudar, sugerir alternativas, abrir. A apresentação foi escrita por Paulo Emilio Salles Gomes e acaba assim:

Nascemos sem ilusões e não está no nosso programa nutri-las. A independência custa caro e não encoraja as subvenções. Não temos propriamente o que vender mas nos achamos em condições de propor um esforço de lucidez. Esta não é artigo de luxo ou de consumo fácil mas em qualquer tempo é alimento indispensável pelo menos para alguns. Sua raridade é, aliás, sempre provisória; tudo que a lucidez revela tende a se transformar em óbvio.Contra fato há argumento.

No terceiro número a revista recebeu o aviso de que deveria ser submetida à censura prévia, e, como não quisemos aceitar, ficamos impedidos de publicá-la e ela acabou, afinal, depois de uma luta que obrigou o presidente da República a baixar decreto, cortando a nossa possibilidade de recorrer à Justiça. Portanto, o resultado final parece ter sido – que contra fato não há argumento. Mas talvez seja possível interpretar de outro modo, dizendo que tanto há argumento contra fato, que os zeladores do fato consumado, da situação intolerável, usam toda a força contra a lucidez da razão, para apagarem o argumento correto e manterem o fato distorcido. De certo modo, isso é o resumo das aventuras da cultura em face da censura, no Brasil de hoje.

O que esta vem representando como sufocação é incrível. Nem é possível avaliar o que significa na deformação da mentalidade de toda uma geração, crescida em regime de censura drástica de rádio, televisão, teatro, jornal. Censura acompanhada de medidas coercitivas, que vão até a morte, como foi o caso de Vladimir Herzog.

Vlado foi a maior vítima da liberdade de opinião e o seu sacrifício representa simbolicamente da maneira mais nobre a luta por ela. Representa a atuação da inteligência em frente da força bruta que se arma para esmaga-la. E até a sua fragilidade física faz pensar no texto famoso de Pascal:

O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmaga-lo: um vapor, uma gota d’água bastam para mata-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e sabe a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada disso.

A diferença é que os agentes da tortura em que se prolongou a censura sabem que matam, na sua força enorme em relação ao intelectual frágil – e isso agrava infinitamente a sua culpa. Mas permanece a imagem do homem isolado, débil, armado da inteligência e da razão, sabendo que elas são mais nobres, mais fortes na escala de valores do que a força que se armou para destruí-lo. Vlado foi, por isso, o eixo em torno do qual a violência de um certo momento girou e declinou. Um frágil caniço pensante que encarnava toda a dignidade e alcance do pensamento.


Reagir e lutar, portanto, sem ilusões excessivas, como diz a nota de Paulo Emilio. Nesta reta de chegada do século, as contradições sociais são tão evidentes, que as soluções de igualdade se impõem. Daí o esforço redobrado dos que as querem esmagar, desviar ou desfigurar, mesmo quando as usam demagogicamente nos seus pronunciamentos. Assim, a perspectiva é de luta, não de tranquilidade. Haverá alguns oásis no vasto deserto e momentos de miragem, antes de se atingir o alvo, que é distante. Por isso, é preciso afirmar a razão, condenar a repressão que no campo da inteligência é censura e, como vimos, vai até a morte dos discrepantes. Estamos no fim de um passado que começou a ser dissolvido com a revolução industrial e no começo de um futuro assinalado pela liberação da energia atômica. É urgente pensar segundo esta escala, enfrentando a violência, que é o esforço desesperado para desviar o futuro, mediante os salvados indesejáveis de um passado moribundo. Para o intelectuais, a luta começa pela oposição à censura, que é a sua mordaça aviltante.

Antonio Candido