1918-2017
A
censura é uma forma eficaz e profunda de violência, e a violência se tornou em
nosso tempo horizonte e limite. Não afundemos demais no lugar-comum, mas
registremos o fato de que neste fim de século a sua penetração e a sua explosão
fazem realmente pensar. sobretudo porque, ao contrário do que ocorreu noutras
épocas e noutras civilizações, ninguém gosta de assumi-la francamente; os seus
próprios autores e executantes não apenas a renegam ostensivamente, como a
condenam. Haja vista na instância suprema os países ricos, que vendem armas aos
outros, cultivam os pontos de conflito no mapa-múndi, mas não obstante lançam
apelos veementes e patéticos a favor da paz.
Talvez
isso venha desde sempre, pelo menos no Brasil, que é um país pacífico, sendo
qualquer violência, no dizer das autoridades e respectivos ideólogos,
“contrária à índole do nosso povo”.
Quando
os homens da minha geração começaram a ler e aprender, reinava na educação
caseira e escolar uma concepção tecida sutilmente de violência inculcada, mas
logo negada, e que por isso mesmo se incrustava a fundo em nossa consciência
burguesa. Esse padrão comportava o que se pode chamar um refinamento estético
da violência, com o culto do penacho, do uniforme vistoso, do rompante heroico,
do gesto marcial cristalizado no quadro ou na estátua, do movimento coreográfico
das batalhas de museu – e uma insensibilidade coletiva em face da maioria
esmagada pela miséria, vista como fato natural. Nós entrávamos por aí com
soldadinhos de chumbo, espadas e capacetes de folha e a ideia de uma profunda
nobreza da força. “Assim nos criam burgueses”, como diz o poeta.
Mas,
ao mesmo tempo, impunha-se a ideia de um Brasil pacífico por natureza, cordato
e generoso, inimigo desta mesma força, com uma história onde o sangue belicoso
só corria derramado no campo da honra para defender o solo invadido ou
ameaçado, dos holandeses aos paraguaios. Hoje as modas são outras entre os
intelectuais, e talvez até se exagere a brutalidade da nossa história, que
apenas não fica devendo nada à de outros países sob este aspecto. No entanto,
creio que ainda predomina a velha barragem ideológica, mantida com uma
pertinácia que chega a espantar, nessa era de violência desmascarada; e que
decerto alcança com eficiência os seus fins mistificadores, como auto-sugestão
consciente ou inconsciente.
Se
não me engano, o primeiro historiador que mostrou a concatenação da violência
na história republicana foi Edgard Carone, não faz muito tempo. Na sua obra, é
impressionante a sucessão ininterrupta da ferocidade, numa cadeia de chacinas,
conflitos sanguinolentos, intervenções armadas cheias de selvageria. Em outros
historiadores isso tudo, quando aparecia, aparecia esbatido ou isolado,
facilitando a ideologia da exceção lamentável. Não há dúvida de que a clava do
hino nacional, se nem sempre foi justa, é invariavelmente forte. Seja como
força física de compressão, seja como pressão sobre a inteligência e a
criatividade, que é o caso da censura.
Violência
física e violência mental são na verdade violência social, como fica mais
evidente neste fim de século especialmente bruto. Ela é fruto da desigualdade
econômica, que requer força para se manter, porque sem força a igualdade se
imporia como solução melhor, que na verdade é. Hoje, é espantoso ouvir e ler os
pronunciamentos das autoridades de todos os níveis, que falam com veemência
crescente que a miséria do povo é intolerável, que a concentração da riqueza
deve ser mitigada, que a pobreza é um mal a ser urgentemente superado – não
raro com estatísticas demonstrativas. É espantoso, porque até pouco tempo tais
afirmações eram consideradas coisa de subversivos; e é espantoso porque isso é
dito, mas quem diz faz tudo para que as coisas fiquem como estão, e para que os
que querem mudar sejam devidamente enquadrados pela força. Não há dúvida de que
a censura funciona como retificação, como dolorosa ortopedia feita para lembrar
aos incautos a obrigação de não passar da demagogia à luta real pela
democracia. A ideia, a palavra, a imagem podem ser instrumentos perigosos aos
olhos dos que desejam apenas escamotear, operando conscientemente no plano da
ideologia para abafar a verdade. Censura, portanto, e censura como arma para
formar com outras o arsenal de manutenção da desigualdade – econômica,
política, social. Por isso, mais em nosso tempo do que em outros, nos quais
eram menos variados e atuantes os meios de expressão, devemos estar cada vez
mais preparados para lutar contra a violência dentro da qual vivemos em todos
os níveis. Inclusive a censura.
Há
certas expressões significativas: “O fato é homem e a palavra é mulher; um
homem vale vinte mulheres”; ou: “Contra fato não há argumento”. Elas querem
dizer que, diante da evidência do real, não cabem as argumentações abstratas em
contrário, o que em princípio parece estar certo. Mas, na verdade, significam
também coisas como “o que vale é a força” ou “ideia não resolve”. Assim, pregam
o reconhecimento do fato consumado, a capitulação diante do que se impôs no
terreno prático, negando o direito de discutir, de argumentar para mudar a
realidade. E então se tornam sinistras.
Sob
este aspecto, o papel do intelectual consiste em fazer o contrário do que tais
expressões postulam. Em não aceitar o fato como necessidade inelutável, nem
considerar inapelável a circunstância que o formou. Em 1973, instigados por
Fernando Gasparian, alguns intelectuais se juntaram a ele para fundar uma
revista, a que deram o nome de Argumento, para marcar o direito da razão em
funcionar contra a força. Os tempos eram bem mais duros do que agora e a
censura à imprensa era maciça. Por isso mesmo, a nossa decisão foi não aceitar
o fato como inevitável, mas lutar na medida das forças para mudar, sugerir
alternativas, abrir. A apresentação foi escrita por Paulo Emilio Salles Gomes e
acaba assim:
Nascemos sem ilusões e não está no nosso programa nutri-las. A independência custa caro e não encoraja as subvenções. Não temos propriamente o que vender mas nos achamos em condições de propor um esforço de lucidez. Esta não é artigo de luxo ou de consumo fácil mas em qualquer tempo é alimento indispensável pelo menos para alguns. Sua raridade é, aliás, sempre provisória; tudo que a lucidez revela tende a se transformar em óbvio.Contra fato há argumento.
No
terceiro número a revista recebeu o aviso de que deveria ser submetida à
censura prévia, e, como não quisemos aceitar, ficamos impedidos de publicá-la e
ela acabou, afinal, depois de uma luta que obrigou o presidente da República a
baixar decreto, cortando a nossa possibilidade de recorrer à Justiça. Portanto,
o resultado final parece ter sido – que contra fato não há argumento. Mas
talvez seja possível interpretar de outro modo, dizendo que tanto há argumento
contra fato, que os zeladores do fato consumado, da situação intolerável, usam
toda a força contra a lucidez da razão, para apagarem o argumento correto e manterem
o fato distorcido. De certo modo, isso é o resumo das aventuras da cultura em
face da censura, no Brasil de hoje.
O
que esta vem representando como sufocação é incrível. Nem é possível avaliar o
que significa na deformação da mentalidade de toda uma geração, crescida em
regime de censura drástica de rádio, televisão, teatro, jornal. Censura
acompanhada de medidas coercitivas, que vão até a morte, como foi o caso de
Vladimir Herzog.
Vlado
foi a maior vítima da liberdade de opinião e o seu sacrifício representa
simbolicamente da maneira mais nobre a luta por ela. Representa a atuação da
inteligência em frente da força bruta que se arma para esmaga-la. E até a sua
fragilidade física faz pensar no texto famoso de Pascal:
O homem não passa de um caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmaga-lo: um vapor, uma gota d’água bastam para mata-lo. Mas, ainda que o universo o esmagasse, o homem seria mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e sabe a vantagem que o universo tem sobre ele; o universo não sabe nada disso.
A
diferença é que os agentes da tortura em que se prolongou a censura sabem que
matam, na sua força enorme em relação ao intelectual frágil – e isso agrava
infinitamente a sua culpa. Mas permanece a imagem do homem isolado, débil,
armado da inteligência e da razão, sabendo que elas são mais nobres, mais
fortes na escala de valores do que a força que se armou para destruí-lo. Vlado
foi, por isso, o eixo em torno do qual a violência de um certo momento girou e
declinou. Um frágil caniço pensante que encarnava toda a dignidade e alcance do
pensamento.
Reagir
e lutar, portanto, sem ilusões excessivas, como diz a nota de Paulo Emilio.
Nesta reta de chegada do século, as contradições sociais são tão evidentes, que
as soluções de igualdade se impõem. Daí o esforço redobrado dos que as querem
esmagar, desviar ou desfigurar, mesmo quando as usam demagogicamente nos seus
pronunciamentos. Assim, a perspectiva é de luta, não de tranquilidade. Haverá
alguns oásis no vasto deserto e momentos de miragem, antes de se atingir o
alvo, que é distante. Por isso, é preciso afirmar a razão, condenar a repressão
que no campo da inteligência é censura e, como vimos, vai até a morte dos
discrepantes. Estamos no fim de um passado que começou a ser dissolvido com a
revolução industrial e no começo de um futuro assinalado pela liberação da
energia atômica. É urgente pensar segundo esta escala, enfrentando a violência,
que é o esforço desesperado para desviar o futuro, mediante os salvados
indesejáveis de um passado moribundo. Para o intelectuais, a luta começa pela
oposição à censura, que é a sua mordaça aviltante.
Antonio Candido