7.2.18

“Nada para os outros”: luta de classes nos Estados Unidos



O clássico estudo de Norman Ware sobre os trabalhadores industriais despontou noventa anos atrás, e foi o primeiro de seu gênero. Não perdeu minimamente a importância. As lições que Ware extrai de sua minuciosa investigação do impacto da emergente revolução industrial sobre a vida da classe trabalhadora e da sociedade em geral são pertinentes hoje quanto na época em que ele a escreveu, se não ainda mais, à luz dos impressionantes paralelos entre a década de 1920 e a atualidade.

É importante lembrarmos qual era a condição do operariado quando Ware escreveu. O poderoso e influente movimento operário que surgiu durante o século XIX estava sendo submetido a um brutal ataque, culminando no Pavor Vermelho de Woodrow Wilson após a Primeira Guerra Mundial. Na década de 1920, o movimento estava praticamente dizimado; um clássico estudo de autoria do eminente historiador dos trabalhadores industriais urbanos David Montgomery é intitulado The fall of the house of labor (A queda da casa do trabalho, em tradução livre). A queda ocorreu nos anos 1920. No final dessa década, ele escreve, “o domínio corporativo da vida norte-americana parecia assegurado [...] A racionalização do negócio pôde então seguir adiante com o indispensável apoio do governo”, com o governo, em larga medida, nas mãos do setor corporativo. Nem de longe foi um processo pacífico; a história do movimento operário norte-americano é singularmente violenta. Um estudo acadêmico conclui que “os Estados Unidos registraram mais mortes no fim do século XIX em decorrência da violência laboral – em termos absolutos e proporcionalmente ao tamanho da população – do que qualquer outro país, exceto a Rússia czarista”. O termo “violência laboral” (a violência relacionada ao trabalho) é uma forma polida de se referir à violência impingida pelo Estado e por forças privadas de segurança tendo como alvo os trabalhadores. Isso continuou até o final da década de 1930; ainda me lembro desse tipo de cena, que presenciei na minha infância.

Como resultado, Montgomery escreveu: “os modernos Estados Unidos foram criados em função dos protestos de seus trabalhadores, ainda que cada etapa da formação do país tenha sido influenciada pelas atividades, organizações e propostas que haviam emanado da vida da classe operária”, sem falar das mãos e dos cérebros daqueles que faziam o trabalho.

O movimento operário reviveu durante a Grande Depressão, influenciando de modo significativo a legislação e incutindo medo nos corações dos donos de indústrias. Em suas publicações, os industrialistas alertavam para o “perigo” que agora tinha diante de si e que teriam de enfrentar por causa da ação operária respaldada pelo “recém-percebido poder político das massas”. 

Embora a repressão violenta não tenha acabado, já não era adequada para a tarefa. Era necessário engendrar meios mais sutis de assegurar o domínio corporativo, essencialmente uma enxurrada de sofisticada propaganda e “métodos científicos de peleguismo”, aprimorado e elevado à forma de grande arte pelas empresas que se especializam na tarefa.

Não devemos nos esquecer da perspícua observação de Adam Smith de que os “mestres da humanidade” – em sua época, os mercadores e industriais da Inglaterra – nunca deixam de ir ao encalço de sua “vil máxima”: “Tudo para nós e nada para os outros”.

O contra-ataque corporativo foi temporariamente suspenso durante a Segunda Guerra Mundial, mas pouco depois do conflito voltou à carga com renovado vigor, por meio da aprovação de uma severa legislação restringindo os direitos dos trabalhadores e uma extraordinária campanha de propaganda cujos alvos eram fábricas, escolas e outras formas de associação. Na década de 1980, com a ferrenhamente antitrabalhista administração Reagan, o ataque foi mais uma vez desferido com força total. O presidente Reagan deixou bem claro para o mundo patronal e empresarial que as leis que protegiam os direitos trabalhistas, nunca muito fortes, não seriam cumpridas. A demissão ilegal de líderes sindicalistas aumentou de forma vertiginosa, e os Estados Unidos retomaram a prática dos fura-greves, banidos em praticamente todos os países desenvolvidos, à exceção da África do Sul. A progressista administração Clinton minou os movimentos dos trabalhadores de diferentes maneiras. Um meio bastante eficaz foi a criação do NAFTA, bloco econômico formado por Canadá, México e Estados Unidos.

Para fins de propaganda, o NAFTA foi rotulado como um “acordo de livre comércio”. Apesar dessa classificação, não tinha nada disso. Como outros acordos do gênero, o NAFTA tinha fortes elementos protecionistas, e boa parte dele nem sequer tratava de comércio; era um tratado para tutelar e ampliar os direitos dos investidores. E, como outros “acordos de livre comércio” do gênero, este previsivelmente mostrou-se danoso para a classe trabalhadora dos países participantes. Um efeito foi o enfraquecimento da organização dos trabalhadores: um estudo realizado sob os auspício do NAFTA revelou que a organização sindical bem-sucedida diminui drasticamente, graças a práticas como alertas das gerências e diretorias das fábricas para que, se uma empresa fosse sindicalizada, seria transferida para o México. Essas práticas são, é claro, ilegais, mas isso é irrelevante, contanto que o negócio possa contar com o “indispensável apoio do governo” a que Montgomery se referiu.

Mediante esses métodos e instrumentos, os sindicatos do setor privado foram reduzidos a menos de 7% da mão de obra, apesar do fato de que a maioria da força de trabalho prefere sindicatos. A seguir, o ataque voltou-se aos sindicatos do setor público, que de uma forma ou de outra haviam sido protegidos pela legislação. Esse processo de destruição está ferozmente em curso, e não pela primeira vez. Podemos nos lembrar de que Martin Luther King Jr. foi assassinado em 1968 enquanto liderava uma marcha em apoio a uma greve em Memphis, Tennesse.

Em muitos aspectos, as condições da classe trabalhadora no período em que Ware escreveu eram semelhantes às que vemos hoje, na medida em que a desigualdade atingiu mais uma vez os altíssimos e assombrosos índices do final da década de 1920. Para uma ínfima minoria, a riqueza se acumulou para além dos limites da avareza. Na década passada, 95% do crescimento econômico foi parar nos bolsos de 1% da população – a maior parte da riqueza fica com uma fração ainda menor. A renda média real está abaixo do nível de 25 anos atrás. Para os homens, a renda média real está abaixo do que se registrava em 1968. A participação dos trabalhadores nos lucros das empresas – a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores – chegou ao índice mais baixo desde a Segunda Guerra Mundial. Isso não é o resultado dos misteriosos mecanismos de funcionamento do mercado ou das leis econômicas, mas, de novo e em larga medida, dos “indispensáveis” apoio e iniciativa de um governo que está significativamente em mãos corporativas.

A revolução industrial norte-americana, Ware observou, criou “um dos mais importantes tons da vida estadunidense” nas décadas de 1840 e 1850. Embora seu resultado final possa ser “bastante agradável aos olhos modernos, foi repugnante para uma parte assombrosamente ampla da comunidade norte-americana”. Ware analisa as abomináveis condições de trabalho impostas aos outrora independentes artesãos e agricultores, bem como às “meninas das fábricas”, moças trazidas das fazendas no interior para trabalhar nas tecelagens dos arredores de Boston. Mas o principal foco de interesse de Ware são aspectos mais fundamentais da revolução que persistiram mesmo quando as condições específicas foram sendo aprimoradas no decorrer de renhidas lutas ao longo de muitos anos.
Ware enfatizou “a degradação sofrida pelo trabalhador industrial”, a perda “de status e de independência” que haviam sido seus bens mais preciosos como cidadãos livres da República, uma perda que não poderia ser compensada nem mesmo pela melhoria material. Ware investiga o devastador impacto da drástica “revolução social” capitalista “em que a soberania nos assuntos econômicos passou da comunidade como um todo para a manutenção de uma classe especial” e geralmente distante da produção. Ele mostra que, “para cada protesto contra a indústria de maquinário”, podem-se encontrar cem contra o novo poder da produção capitalista e sua disciplina”.

Os trabalhadores faziam greves não apenas por pão e rosas, para tomar de empréstimo o lema tradicional. Buscavam dignidade e independência, o reconhecimento de seus direitos como homens e mulheres livres. Criaram uma imprensa operária vigorosa e independente, escrita e produzida por aqueles que trabalhavam nas fábricas. Em seus jornais e panfletos, condenavam a “destrutiva influência de princípios monárquicos em solo democrático”. Reconheciam que essa agressão aos direitos humanos elementares só seria sobrepujada quando “os que trabalham nas fábricas forem donos delas”, e quando a soberania retornar aos produtores livres. Então, os trabalhadores já não mais serão “servos e capachos ou humildes súditos de um déspota estrangeiro, [os proprietários ausentes], escravos no sentido mais estrito da palavra [que] trabalham [...] para seus senhores. Ao contrário, reaverão seu status de “cidadãos norte-americanos livres”. 

A revolução capitalista instituiu uma mudança crucial para o valor do salário. Quando o produtor vendia seu produto por um determinado preço, Ware escreve, “ele mantinha sua pessoa. Mas quando passou a vender sua mão de obra, vendeu a si mesmo”, e perdeu sua dignidade como pessoa à medida que se tornou um escravo – um “escravo do salário”, termo comumente empregado. O trabalho assalariado era considerado similar à escravidão, embora dela diferisse por ser temporário – em teoria. Essa compreensão era tão generalizada e difundida que se tornou um slogan do Partido Republicano, defendido por sua figura de proa, Abraham Lincoln.

O conceito de que iniciativas e empreendimentos produtivos devem ser de propriedade dos trabalhadores e pertencer à mão de obra era corrente em meados do século XIX, ratificado não apenas por Marx e pela esquerda, mas também pela mais destacada figura do liberalismo clássico da época, John Stuart Mill. Ele defendia que “a forma de associação, se a humanidade continuar a se aperfeiçoar, como se espera que predomine é [...] a associação dos próprios trabalhadores entre si, em termos de igualdade, possuindo eles, coletivamente, a propriedade do capital com o qual operam, e trabalhando sob o comando de administradores eleitos e passíveis de substituição por eles mesmos”. O conceito tem de fato sólidas raízes em noções que animavam o pensamento liberal clássico. É um pequeno passo vinculá-lo ao controle de outras instituições e comunidades numa estrutura de livre associação e organização federal, no estilo de uma gama de pensamento que inclui, juntamente com boa parte da tradição anarquista e do marxismo esquerdista antibolchevique, o socialismo de guildas de George Douglas Howard Cole e as obras teóricas muito mais recentes. E, de modo ainda mais significativo, inclui ações, à medida que muitos trabalhadores de diversas profissões e classes sociais buscam reaver o controle de suas vidas e seus destinos.

Para minar essas doutrinas subversivas, era necessário que os “mestres da humanidade” tentassem mudar as atitudes e convicções que as fomentavam. Como relata Ware, os ativistas dos movimentos dos trabalhadores alertaram sobre o “Novo Espírito da Época: torna-te rico e esquece-te de tudo, menos de ti mesmo” – a vil máxima dos mestres e senhores, que eles naturalmente tentavam impor a seus súditos, sabendo que esses vassalos só teriam condições de ganhar uma diminuta porção da riqueza disponível. Em drástica reação a esse espírito degradante, os ascendentes movimentos dos operários e lavradores radicais, o mais importante dos movimentos democráticos populares na história norte-americana, devotaram-se à solidariedade e ao auxílio mútuo. Foram derrotados, quase sempre pela via da força. Mas a batalha está longe de terminar, apesar dos reveses, da repressão invariavelmente violenta e dos gigantes esforços para incutir na opinião pública e na mente coletiva e vil máxima, por meio dos recursos dos sistemas educacionais, da imensa indústria da publicidade e de outras instituições de propaganda dedicadas a essa tarefa.

Há graves barreiras e empecilhos a superar na luta por justiça, liberdade e dignidade, mesmo além da cruel e implacável luta de classes incessantemente conduzida pelo mundo corporativo – que tem elevada consciência de classe – com o “apoio indispensável” dos governos que em larga medida são controlados pelas corporações. Ware discute algumas dessas insidiosas ameaças da forma como eram entendidas pela classe trabalhadora. Ele discorre sobre o pensamento dos trabalhadores qualificados de Nova York 170 anos atrás, que repetiam a opinião comum de que um salário diário é uma forma de escravidão e alertavam, com aguçado discernimento, que chegaria um dia em que os escravos do salário “terão até certo ponto de esquecido tanto daquilo que se deve à humanidade como à glória, em um sistema que lhes é impingido por sua necessidade e em oposição a seus sentimentos de independência e autorrespeito”. Eles tinham a esperança de que esse dia estivesse “bem distante”. Hoje, são comuns os sinais desse dia, mas as demandas por independência, respeito próprio, dignidade pessoal e controle de cada indivíduo sobre o próprio trabalho e a própria vida, tal qual a velha toupeira de Marx, continuam a cavar e a circular incessantemente por baixo da terra, não muito longe da superfície, pronta para irromper bruscamente quando é despertada pelas circunstâncias e pelo ativismo militante.

Noam Chomsky 
Trad.: Renato Marques