26.4.18

existe, sim, uma literatura de esquerda

1915 - 1980

Pelo número e pela qualidade das respostas que nos chegaram, percebemos que o debate que quisemos instaurar entre alguns escritores e nossos leitores sobre "A literatura de esquerda" é complexo e difícil. Isso porque se baseia em noções vagas, tradicionalmente aceitas, que seria preciso definir de novo. O que é esquerda? Basta dizer-se de esquerda para escrever uma obra de esquerda? O que é até mesmo literatura? Tais são as indagações que em geral nossos correspondentes formularam.

Nossa hipóteses de partida, segundo a qual distinguimos escritor de esquerda, definindo-o pelas reações hostis do mundo clerical e burguês, e obra de esquerda, cujo conteúdo justamente convidamos a definir, apesar de aceita de modo geral, provocou algumas contestações.

[...]

Se toda literatura é, por definição, de esquerda, de fato é inútil impingir um rótulo. Ou então é preciso negar a qualidade de escritor a escritores fascistas, colaboradores do regime de ocupação e a todos os que defendem valores estabelecido, coisa a que, apesar de nosso "esquerdismo", nos negamos.

Fenômeno literário - uma admiração diante do mundo, e uma admiração que compete exprimir.

Matéria para descrições, reflexões, expressão?

Do lado oposto, os defensores de uma literatura sem rótulos, alguns de nossos correspondentes preconizam uma literatura a serviço da filosofia, da ética, da política.

Pela liberdade contra a servidão e a opressão, pelo socialismo contra a opressão, os homens e mulheres de hoje estão engajados numa luta sem quartel.

Os militantes são melhores escritores que os próprios escritores.

Ponto de vista de consumidor.

A criação literária supõe a independência total da pessoa que escreve.

Ref.: Lacaios do poder - Edgar Morin

Signos de identidade de literatura de esquerda:

1. A literatura de esquerda, ou progressista, ou revolucionária, é movimento, superação, questionamento.

2. A literatura de esquerda é uma literatura da inquietação e da recusa. Sua atitude é inconformista ou herética em relação a todas as ortodoxias, até as de esquerda. Ela critica os valores da ordem burguesa, reivindica em favor das minorias, protesta permanentemente contra a injustiça, postula, abertamente ou não, o advento de um novo homem numa sociedade justa. 

A literatura de esquerda estará sempre fora da ortodoxia. Seu objetivo é formular problemas, impedir o entorpecimento e a esclerose.

3. Literatura de esquerda é aquela que combate todas as violações ao direito inalienável à vida.

4. A literatura de esquerda dá nova significaçao à palavra "humanismo", sob cuja égide são perpetrados todos os crimes contra o homem, tornando-o sinônimo de libertação dos homens para si mesmos, sem coadjuvantes metafísicos ou religiosos.

5. A obra de esquerda é sempre, em última instância e mesmo que se limite ao individual, descrição e análise profunda de uma situação histórica dada. Ela situa o indivíduo em seu meio, em seu grupo social, na forma de sociedade à qual ele pertence, sem o que seus sentimentos, pensamentos e comportamentos seriam incompreensíveis.

Há escritores perfeitamente independentes que só têm futilidades para dizer, e muito mais escritores há que ignoram a época em que vivem. O caminho de uma literatura de esquerda se estabelece em direção a mais consciência, por um lado, e a maior maestria, por outro. Ela parte da probidade do artista para chegar à verdade de sua expressão. No âmago da mistificação permanente e multiforme, a obra de esquerda desmente os mitos, denuncia as imposturas, afirma sem descanso que os males dos homens merecem remédios. Ela traz as marcas da lucidez e da coragem.

Literatura de luta? Sem dúvida alguma. [...] O escritor não luta por uma mudança de ministério, ainda que essa mudança seja muitíssimo desejável, mas por uma transformação das condições externas e internas que determinam o indivíduo, seus pensamentos, sua moral.

Caráter "esquerdista": seu lado vivo, sem o qual ela cairia no entretenimento, na futilidade, no apoio à ordem estabelecida. Pode-se até dizer que a literatura de esquerda consolida e desenvolve em si tudo o que não é literatura, que ela visa o grau último, em que a literatura nada mais seria que a forma ritual de seu próprio questionamento e passagem direta do domínio da expressão para o mundo real da História. Se esse momento chegar um dia, é possível que a literatura morra. Mas será por ter-se transformado em história.

Roland Barthes
L' observateur1953
Trad.: Ivone. B.