29.6.18

O espírito esportivo

Quino

Fico sempre espantado quando ouço gente dizendo que o esporte cria boa vontade entre as nações, e que se as pessoas comuns do mundo pudessem se encontrar num jogo de futebol ou críquete, não teriam nenhuma inclinação para se encontrar no campo de batalha. Mesmo que não soubéssemos, a partir de exemplos concretos (as Olimpíadas de 1936, por exemplo), que as disputas esportivas internacionais levam a orgias de ódio, isso poderia ser deduzido de princípios gerais.

Quase todos os esportes praticados hoje em dia são competitivos. Joga-se para ganhar, e o jogo faz pouco sentido se não fizermos o máximo para vencer. No campo da aldeia, onde você escolha lados e não há nenhum sentimento de patriotismo local envolvido, é possível jogar simplesmente pelo divertimento e pelo exercício; mas assim que surge a questão do prestígio, assim que você sente que você e uma unidade maior serão execrados se perderem, despertam-se os instintos combativos mais selvagens. Quem já participou de um jogo de futebol, nem que seja na escola, sabe disso. No cenário internacional, o esporte é francamente um arremedo de guerra. Porém, o mais significativo não é o comportamento dos jogadores, mas a atitude dos espectadores, das nações que ficam furiosas em relação a essas disputas absurdas e acreditam seriamente - ao menos por períodos curtos - que correr, saltar e chutar uma bola são testes de virtude nacional.

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Assim que sentimentos fortes de rivalidade são incitados, desaparece a noção de jogar o jogo conforme as regras. As pessoas querem ver um lado por cima e outro humilhado, e esquecem que a vitória obtida pela trapaça ou pela intervenção da torcida não faz sentido. Até mesmo quando não intervêm fisicamente, os espectadores tentam influenciar o jogo, incentivando seu time e envenenando o adversário com vaias e insultos. O esporte sério nada tem a ver com o jogo limpo. Ele está vinculado a ódio, ciúme, jactância, desconsideração de todas as regras e prazer sádico de testemunhar violência: em outras palavras, é uma guerra sem os tiros.

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São os esportes mais violentamente combativos, futebol e boxe, os que mais se difundiram. Não pode haver muitas dúvidas de que a coisa toda está vinculada à ascensão do nacionalismo - isto é, com o inconsequente hábito moderno de se identificar com unidades de poder maiores e ver tudo em termos de prestígio competitivo.

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Na Idade Média, eram jogados, tudo indica que com muita brutalidade física, mas não estavam misturados à política nem causavam ódios entre grupos.

Se quiséssemos aumentar o vasto fundo de má vontade existente no mundo neste momento, dificilmente poderíamos fazer melhor do que promover uma série de jogos de futebol. [...] tornamos as coisas piores por mandar um time de onze homens, rotulados de campeões nacionais, lutar contra um time rival e deixar que todos os envolvidos sintam que a nação que for derrotada vai "perder a dignidade".

[...] Já existem muitas causas reais para problemas e não precisamos aumentá-las estimulando homens jovens a se chutar mutuamente nas canelas, em meio a rugidos de espectadores enfurecidos.


George Orwell
Tribune, 14 de dezembro de 1945
Trad.: Pedro Soares