1.1.19

As reivindicações da canalha


Ó canalha boçal e repugnante, vais afinal convencendo-te de que ninguém de ti faz caso? Não ganhas para a exígua satisfação das tuas necessidades - e por isso gritas contra os teus patrões, contra os teus senhores, contra os teus governantes...

Achas, ó vil canalha, que trabalhas muitas horas e ganhas o insuficiente para viver, para poder arrastar a tua mísera existência de escravo, sem ideais e sem desejos... É por só passares fome que grita, plebe imunda!

O teu destino há de ser o aniquilamento completo. Desengana-te, corja vil. Tens que ser a eterna besta de carga, a alimária da nora, a girar, a girar da manhã à noite, em passo tardo e igual até não poder mais. 

Berraste, saíste para as ruas em magotes, a reclamar mais pão e menos serviço - e o teu patrão avisou logo a polícia, cognominou-te revoltada e criminosa, vituperou-te como estrangeira e suja, caluniou dizendo-te farte e bem paga - e os governantes, indignados com as tuas reclamações sediciosas e extemporâneas, atiraram contra ti os homens da caserna, que te tosaram bem, medindo-te, entre risos escarninhos, as espáduas esquálidas com o seu sabre reluzente e flexível.

Afinal, que ganhaste? Por terem dó de ti, que apanhaste chorando docilmente, sem revolta, deram-te mais uma migalha no ordenado e concederam-te uns minutos mais de descanso... Algo es algo... Mas o feijão continua a subir, o pão mirra cada vez mais, a carne (tu ainda comes carne, é, miseranda canalha?) resume-se a uns frangalhos sebosos e um osso que se adquirem a mil e tantos réis o quilo, as batatas são objeto de luxo, os legumes nem se bispam, e assim anda tudo por esta cristianíssima Paulicéia... Como poderás tu, ó canlha fétida e repugnante, encher o grosseiro bandulho, se os alimentos mais vulgares e triviais assumem foros aristocráticos?

Pobre filhos da escumalha, desde o respeito até a justiça, desde o bem-estar até a alegria, desde a carne até a batata - tudo foge de ti... Produzes o mesmo efeito que a peste!

Basta, pois, de declamações néscias e de queixas ridículas. Resigna-te à tua condição de escrava. Não perturbes mais o plácido viver dos cavalheiros que governam a nau do Estado ou se alcandoram na Bolsa...

Que há de meninas pálidas e enfeadas, moças anêmicas e tristes, velhas esquálidas e encarquilhadas devido ao mau passado e ao exaustivo trabalho? E que têm eles com isso? Não nos deram ruas primorosamente empedradas, asfaltadas e arborizadas nos bairros chiques de Higienópolis, Avenida Paulista e Campos Elísios, para que os automóveis rodem sem abalo, suavemente? 

Que há de crianças que timidamente estendem a mão aos transeuntes implorando um tostão para matar a fome implacável que lhes rói as tenras vísceras? E para que há agentes de polícia e guardas cívicos senão para castigar e prender inexoravelmente esses malandretes que, em vez de estarem curtindo a fome a um canto de sua água-furtada, expõe, imprudentemente, a sua ignóbil miséria?

Que nestas brumosas manhãs de outono já miseráveis que revolvem febrilmente as latas de lixo antes de irem para o carro, procurando trapos velhos, papéis servidos, umas tronchas semipodres ou uns restos de comida misturados com cinza para apaziguar as raivosas contrações dos intestinos? Quem assiste a esses deprimentes espetáculos? Não são as respeitáveis damas da "elite", que a essa hora matinal ainda repousam placidamente nos fofos e ricos leitos. Nem são os "almofadinhas" e demais "meninos bonitos" que recolhem de madrugada, depois de haverem compartilhado de todos os prazeres da crápula durante a noite inteira. Nem são os jogadores, os notívagos frequentadores dos bordéis de alto bordo, os boêmios de alta e baixa estofa, pois todos eles nesse momento têm os olhos embaçados pelo sono e pelo álcool e não reparam nessas coisas repugnantes e infames.

E então aqueles que moram em quartinhos reduzidos e quentes como fornos, em porões baixos e úmidos, em cortiços infectos e escuros! E em todas essas habitações há sempre uma criança que chora porque os seios mirrados e moles, como trapos, da mãe não dão mais o suco leitoso; há uma mãe que suspira vendo morrer extenuado o filho tuberculoso; há um moço que medita um crime; há uma jovem que compara a sua sorte à das prostitutas e imagina com ânsia na perdição; há um homem que jura e maldiz...

Que belo quadro, hem, canalha imunda? Desejas coisa melhor que habitações repugnantes, fogãozinho quase sempre apagado, leitos de capim moído, cadeiras esculhambadas, esse cheiro penetrante e crasso de miséria que perfuma o ar denso e mortífero que nunca se renova nem se purifica?...

E, no entanto, ó canalha miserável, lá pelos começo de 89, quando de agitavas e mexias sonhando um porvir ditoso em que a dignidade e o trabalho te elevassem e engrandecessem, eras capaz de supor continuar nesta abjeção? Aqueles delírios de emancipação, aquela ânsia de sair da tua esfera, aqueles protestos contra tudo o que coartava a tua liberdade deviam merecer o prêmio merecido - e agora estás gozando o resultado da tua candura... Por que não chamas a contas todos aqueles que te engordaram - perguntando-lhes pela liberdade e pelo bem-estar que eles, em discursos inflamados, te prometeram tanta vez, logo que triunfassem?

Já os quiseste chamar a contas?... Ah, sim? E que foi que eles te disseram? Nada? Ah! ah! ah!... Mandaram espadeirar-te e moer-te os lombos com o chanfalho policial?... Pois então que querias, gentalha fétida? Talvez que eles descessem dos seus faustosos palacetes ou apeassam dos seus confortáveis automóveis para te abraçar e consolar?... Tu andas muito iludida, plebe esfarrapada. É necessário que compreendas que eles, hoje, já não precisam mais de ti. Eles não necessitam mais de ouvintes para os seus discursos, porque não fazem mais discursos, só pensam nos negócios que dão riqueza, poderio e esplendor. Para ser eleitos eles dispõem em cada localidade de um ou dois pajés, a que dão o nome pomposo de chefes políticos e que os servem com a dedicação pasmosa recorrendo à Mallat quando os votos são poucos... Tu és, pois, unicamente a besta paciente e laboriosa, cuja única missão consiste em trabalhar, trabalhar, trabalhar, até que a morte te redima dessa triste abjeção!

Que não queres que isto assim continue? Tu deliras, corja submetida. Como podes fazer prevalecer as tuas aspirações igualitárias e justiceiras se estás desunida e fraca, se és incapaz de pôr-te de acordo, e quando algum revoltado audaz te quer fazer compreender os teus direitos e como deves proceder, vem a polícia, prende o orador e tu nem a audácia miseranda tens de protestar e opor-te à iníqua prisão?

Que me dizes de Domingos Pereira? Que fizeste até agora por ele? Que és capaz de fazer por ele, ó escumalha aviltada e vilipendiada? E ele está preso por ti, é por ti que ele está sofrendo o cárcere há um mês e foi brutalmente espancando e barbaramente tratado pelos algozes da Polícia...

A liberdade não se implora nem se pede. A liberdade conquista-se, a liberdade toma-se.

Sois capazes disso, ó filho do Pó?

Pois, quando fordes, tereis conseguido a vossa integral emancipação.

Everardo Dias
A Plebe, SP, ano II, n. 17, 1919.