30.5.19

o outro lado do quadro


1924 - 1978

[...] 

Que vem a ser então o professor de Letras? Um inoculador de cultura? Um disseminador de indagações? Um transmissor de técnicas cheio de certezas. E dificilmente pode-se imaginar como essa nova situação é cômoda e, portanto, desejável. Fica o professor a salvo do equívoco que levou tantos de seus antecessores à eterna misantropia: o de tentar incutir nos alunos a sua própria paixão por determinadas obras e pela literatura em geral (empresa, como se pode prever, inteiramente absurda). Não só não lhe cabe despertar essa paixão - e sim mostrar relações -, como não deve. Acho mesmo que um homem, hoje, será melhor professor de Literatura, ao menos um professor mais eficiente, mais aparelhado para o que dele se espera, se não amar o que ensina. Estou convencido de que a grande maioria está nesse caso. Não amam realmente a literatura e os livros. Se os amavam, a carreira e a eficiência exigem que esse amor seja sufocado ou escondido ou morto. Na maioria das vezes, nunca houve paixão, apenas uma aprendizagem; e paixão, se houve, já não há. Não me acusem de estabelecer conexões arbitrárias se eu disser que isto pode ser a explicação para o lastimável vício da apostila, tanto da parte de professores como da parte de alunos - a apostila, o antilivro, uma das mais indecentes perversões que hoje minam o ensino brasileiro. 

Mas por que estou falando aqui em paixão? Não se vende essa mercadoria. Chegamos, assim, a um ponto da maior importância no assunto que discuto. Na época atual, tão propícia aos valores comerciáveis, que lugar tem o indivíduo que quer exaltar os espíritos, agitar as inteligências, levantar perplexidades? Que lugar tem o homem que quer incendiar um fervor? 

Nenhum escritor que eu conheço escreve para comprazer professores universitários e muito menos o faziam um Gregório de Matos, Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos. Temos, todos nós, a consciência de um compromisso com a palavra, com a língua materna e também com o povo a que estamos ligados, que procuramos entender e cujo destino, não importa em que medida nos conheça, nos preocupa a todos. Pelo que, se nos aflige como dizer, de modo algum consideramos desprezível o que dissermos. 

Isto, dirá o teórico nacional em dia com os teóricos europeus, é problema do autor, não nosso. Concordo. Não devem ter compromisso com as intenções e as preocupações de escritor algum. Mas poderão, com a mesma desenvoltura, esquivar-se a toda responsabilidade para com a evolução da consciência do seu povo? E é isto o que ocorre, quando, havendo assimilado, com tranquila passividade, atitudes e ideias geradas noutro contexto - com problemas culturais e sociais completamente diversos dos nossos - operam, junto a multidões de alunos para os quais a literatura é ainda terra virgem e que, por isso mesmo, querem informações precisas, concretas, comerciáveis, operam, dizia, como amortecedores da obra literária, diluindo, esbatendo o que a obra literária contém de corrosivo, de demolidor, de esclarecedor, de perturbador. 

Optar nessa direção, entende-se, é uma questão de foro íntimo. Mas quando alguém faz claramente essa opção, temos o direito de olhá-lo de viés. Como diz C. W. Mills: "A verdadeira traição dos intelectuais do Ocidente funda-se na burocratização da cultura. Demasiado artificiosos para sustentar com argumentos explícitos a sua débil atitude política, evitam qualquer debate, e refugiam-se, como intelectuais paralisados, numa esfera puramente técnica e utilitária." 

Osman Lins
1977