25.7.19

a elite do atraso



Como não houve aqui a criação do mecanismo da TV pública, que não se confunde com TV estatal, em uma sociedade com pouca leitura e pouca reflexão, a dominação simbólica mais violenta encontrou terreno fértil para se desenvolver. A história da sociedade brasileira contemporânea não pode ser compreendida sem que analisemos a função da mídia e da imprensa conservadora. É a grande mídia que irá assumir a função dos antigos exércitos de cangaceiros, que é assegurar e aprofundar a dominação da elite dos proprietários sobre o restante da população. A grilagem agora não assumirá mais apenas a forma de roubo violento da terra dos posseiros pobres, mas sim também a forma da colonização das consciências com o fito de possibilitar, no entanto, a mesma expropriação pela elite. Substitui-se a violência física, como elemento principal da dominação social, pela violência simbólica, mais sutil, mas não menos cruel. Nos últimos cinquenta anos, nenhum grupo empresarial midiático foi mais bem-sucedido empresarialmente, nem se esmerou tanto na tarefa de distorcer sistematicamente a realidade brasileira, em nome de interesses inconfessáveis, quanto a Rede Globo. Não que ela esteja sozinha ou seja muito pior que o resto da grande imprensa. Não, toda a grande imprensa se irmana no ataque à democracia e à soberania popular. Recentemente, a Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo, apenas para citar um exemplo entre milhares possíveis, mostraram a mesma foto de capa depois das manifestações no dia 24 de maio em Brasília contra o governo Temer, onde um vândalo ataca com pedras um prédio público. Para quem viu, como eu, a manifestação inteira por filme que deixava claro o ataque e a provocação policial com cavalaria e com bombas de efeito mortal sobre os manifestantes então pacíficos, a violência simbólica, a mentira consciente e a fraude do público eram estarrecedoras. Uma imprensa em conluio com uma repressão antidemocrática e abusiva, em nome da distorção sistemática da informação, não é privilégio da Globo. A revista Veja, por exemplo, se esmera em matérias cuja finalidade é produzir ódio e informação enviesada e distorcida para seu público da fração protofascista da classe média. Mas a Globo levou a fraude e a distorção sistemática da realidade a níveis de ficção científica. E, pelo seu tamanho, influência e ousadia no último golpe, merece atenção especial. Além disso, os donos de jornal e revistas possuem uma empresa privada, enquanto a Rede Globo é uma concessão pública. 

O começo do império da Globo foi construído à sombra da Ditadura Militar. Passando a operar em rede no país como um todo, ela passa a servir como porta-voz dos interesses do governo militar. O programa Amaral Neto, o repórter serve diretamente como propaganda ufanista do governo e suas realizações de modo acrítico. O Jornal Nacional, cuidadosamente monitorado, assume a forma “nacional”, como o nome já diz, e alcança toda a população com um mote caro aos militares no poder. 

De resto, a Globo assume mimeticamente a dinâmica e a forma da época do “Brasil grande”. Excelência técnica passa a valer como símbolo do tipo de modernidade que chegava ao país e a própria empresa passa a explorar ao máximo os ganhos materiais e simbólicos que essa associação lhe garantia. Modernidade capenga certamente, posto que retirava da esfera pública sua característica principal e decisiva: a pluralidade dos argumentos em disputa. Vimos na reconstrução histórica inspirada por Habermas que “modernidade” efetiva e real é a capacidade de produzir informação plural e juízo autônomo. É fundamentalmente isso que a modernidade tem de positivo quando comparada com outras épocas históricas. O resto é secundário ou mais do mesmo que existia antes com outras máscaras. É isso que se perde com sua colonização pelo dinheiro: a capacidade de reflexão e aprendizado de todo um povo! 

Nossa esfera pública tardia já nasce sob império da manipulação sem jamais ter conhecido outra experiência. Falta ao público brasileiro qualquer padrão de comparação para avaliar o que recebe em casa. A Globo vicejou nesse contexto. Males da época, poder-se-ia dizer. Não é verdade, já que, mesmo na redemocratização, o mesmo projeto é inclusive aprofundado. A partir daí, a Globo jamais deixou de se apresentar como um misto de TV estatal e pública, utilizando-se dos ganhos simbólicos e materiais que esse tipo de confusão consciente provoca no seu público cativo. 

Essa confusão, que foi vital para o crescimento da empresa sob os militares, se revelaria ainda mais produtiva no contexto da redemocratização. Galvão Bueno e seu nacionalismo de fachada e exagerado são um símbolo dessa estratégia empresarial que procura confundir de propósito a empresa com a nação, o interesse particular e venal com o interesse público e universal. Quem não lembra, entre os mais velhos, do tema de Ayrton Senna a cada vitória e depois a volta triunfal envolto na bandeira brasileira, enquanto o locutor aos gritos comemorava mais uma vitória que era de toda a nação e sentida enquanto tal pelos telespectadores? Os exemplos práticos dessa estratégia de engodo volitivo e refletido são incontáveis. 

Campanhas como Criança Esperança reforçam essa imagem de TV de interesse público, desviando o fito real da empresa. Mas, além dessa farsa inicial, que acompanha a empresa até hoje, a Globo também se especializou em veicular a farsa maior do capitalismo financeiro em escala mundial: esconder a superexploração do trabalho que ele implica e ainda se vender como crítica da sociedade. Assim, a defesa de minorias, desde que não envolvam repartição de riqueza e de poder social, é apoiada pela empresa, que pode posar de crítica e emancipadora. A glorificação da periferia das grandes cidades, desde que não envolva real incorporação das classes populares aos bens civilizatórios, o que exigiria a discussão de suas carências que são reais, também é defendida pela Globo. Inúmeras novelas, assim como o programa Esquenta, com Regina Casé, servem para esconder o engodo. 110 Aqui se chama “favela” de “comunidade”, como se com isso a vida prática dessas pessoas pudesse melhorar pela magia da palavra bonita que espelha uma mentira. 

A Globo é a roupagem perfeita para um capitalismo selvagem e predatório que chama a si mesmo de emancipador e protetor dos fracos e oprimidos. A glorificação do oprimido não ajuda em nada que o cotidiano cruel e opressivo dos pobres seja melhorado, mas emula a necessidade de legitimação da vida que se leva quando as mudanças efetivas estão fechadas. O mais cruel é que as possibilidades de redenção real são tanto mais impossíveis quanto maior a influência dessa mensagem mistificadora produzida pela emissora. Como no golpe de 2016, a emissora ajudou a impedir a continuidade de um processo de ascensão social dos pobres que era real. O processo de manipulação social caminha sempre no sentido de extrair a riqueza de todos e concentrar o poder nas mãos de poucos – inclusive da família que manda na empresa –, dando a impressão de que se é defensor dos melhores valores da igualdade e da justiça. Mesmo toda a fraude golpista da moralidade seletiva é construída como se a TV fosse mero veículo neutro de informação. 

A colonização da esfera pública assume não apenas a forma de rebaixamento de todos os conteúdos para ampliar o público consumidor, ela assume a forma da confusão cevada e proposital do interesse privado sempre apresentado como público. Coloniza-se aí não apenas o consumidor do produto cultural, mas também coloniza-se nesse engodo e fraude deliberada o cidadão induzido em uma crença contra a qual se encontra literalmente sem defesa. É a partir dessa confusão deliberada, construída com maestria técnica e cuja expressão é corporificada por figuras bonitas, talentosas e charmosas, que a Globo assume um papel central e muito mais importante que todos os outros veículos e mídias de comunicação somados.

Jessé Souza