30.7.19

consentimento sem consentimento


Na terminologia do pensamento progressista moderno, a população pode ser "espectadora", mas não "participante", à parte a ocasional escolha de líderes representativos do autêntico poder. Essa é a arena política. Da arena econômica, que é onde se determina a maior parte do que acontece na sociedade, a população em geral deve ser totalmente excluída. Aqui o público não tem nenhum papel a cumprir, de acordo com a teoria democrática dominante.

Vejamos o exemplo do Brasil,  "o colosso do sul". Visitando o país em 1960, o presidente Eisenhower assegurou aos brasileiros que "o nosso sistema de iniciativa privada com consciência social beneficia todo o povo, sejam proprietários ou trabalhadores... Em liberdade, o trabalhador brasileiro está feliz, demonstrando as alegrias da vida sob o sistema democrático". O embaixador acrescentou que a influência dos Estados Unidos havia quebrado "a velha ordem na América do Sul", trazendo-lhe "ideias revolucionárias como o ensino universal e obrigatório, a igualdade perante a lei, uma sociedade relativamente sem classes, um sistema de governo responsavelmente democrático, a livre competição empresarial [e] um fabuloso padrão de vida para as massas".

Mas os brasileiros reagiram duramente às boas novas trazidas pelos seus tutores do norte. As elites latino-americanas são "como crianças", informou ao Conselho de Segurança Nacional o Secretário de Estado John Foster Dulles, não possuem "quase nenhuma capacidade de autogoverno". E o pior é que os Estados Unidos estão "inapelavelmente atrasados em relação à União Soviética no desenvolvimento de meios de controle sobre os corações e as mentes das pessoas simples". Dulles e Eisenhower expressaram a sua preocupação com a "capacidade comunista de assumir o controle dos movimentos de massa", capacidade que " não temos como imitar": "eles apelam aos pobres e estes sempre quiseram pilhar os ricos".

Em outras palavras, achamos difícil induzir o povo a aceitar a nossa doutrina de que os ricos devem pilhar os pobres, um problema de relações públicas ainda não resolvido.

O governo Kennedy enfrentou esse problema mudando a missão dos militares latino-americanos, da "defesa do hemisfério" para a "segurança interna", decisão que teve consequências funestas, a começar pelo golpe de estado brutal e assassino de 1964, no Brasil. Os militares eram vistos por Washington como uma "ilha de sanidade" no país, e o golpe foi saudado pelo embaixador de Kennedy, Lincoln Gordon, como uma "rebelião democrática", na verdade "a mais decisiva vitória isolada da liberdade neste meio século". Gordon, ex-economista da Universidade de Harvard, acrescentou que essa "vitória da liberdade" - isto é, a derrubada violenta da democracia parlamentar - iria "criar um clima muito mais propício ao investimento privado", lançando desse modo algumas luzes sobre o significado prático de termos como liberdade e democracia.

Dois anos mais tarde, o Secretário de Defesa Robert McNamara informou a seus pares que "em seu conjunto, as políticas dos Estados Unidos em relação aos militares latino-americanos atingiram eficazmente os seus objetivos". Elas haviam aumentado "a capacidade de segurança interna" e estabelecido "o predomínio da influência militar norte-americana". Os militares latino-americanos compreendem as suas tarefas e estão preparados para cumpri-las, graças aos programas de ajuda e treinamento militar do governo Kennedy. Essas tarefas incluem a derrubada de governos civis "sempre que os militares considerarem a ação dos governantes nociva à prosperidade da nação". Tais ações militares são necessárias "no ambiente cultural latino-americano", explicaram os intelectuais de Kennedy. E podemos estar seguros de que essas ações serão executadas de modo apropriado, agora que os militares "compreendem e se orientam para os objetivos dos Estados Unidos". Isso garante um resultado positivo na "luta revolucionária pelo poder entre os principais grupos constitutivos da atual estrutura de classes" na América Latina, resultado que protegerá o "investimento privado [e o comércio] norte-americano", fundamento econômico" que é a essência do "interesse político dos Estados Unidos na América Latina". 

Esses são documentos secretos: no caso, do liberalismo de Kennedy. O discurso público, claro, é totalmente diverso. Limitando-nos a ele, aprendemos muito pouco sobre o verdadeiro significado da "democracia" e sobre a ordem global dos anos passados;  e do futuro também, porque são as mesmas mãos que continuam segurando as rédeas.

Noam Chomsky
Trad.: Pedro J.