18.7.19

Recapitulando


A novidade do Neoliberalismo

As "más ideias" podem não servir aos "objetivos expressos", mas geralmente acabam se revelando ótimas para os seus grandes arquitetos. 

A primeira grande experiência foi levada a cabo há duzentos anos, quando o governo britânico da Índia institui a "Colonização Permanente", que iria produzir coisas assombrosas. Uma comissão especial analisou seus resultados quarenta anos depois, concluindo que "a colonização, concebida com tanto cuidado e ponderação, infelizmente submeteu as classes baixas à mais penosa opressão", deixando atrás de si "as ossadas dos tecelões [que] branqueiam as planícies da Índia" e uma miséria que "não há de encontrar paralelo na história do comércio". 

Mas essa experiência dificilmente pode ser classificada como um fracasso. O governador-geral britânico observou na ocasião que a "Colonização Permanente", embora tenha fracassado em muitos aspectos essenciais, teve ao menos o mérito de haver criado uma vasta classe de ricos proprietários de terras movidos por um profundo interesse na constituição do Domínio Britânico e que têm total controle sobre a massa do povo". Outro mérito foi o de ter proporcionado grandes riquezas aos investidores britânicos. A índia financiou 40 por cento do déficit comercial da Grã Bretanha, ao mesmo tempo em que forneceu um mercado cativo pra suas exportações de manufaturados, trabalhadores por empreitada para as possessões britânicas em substituição às antigas populações escravas, e o ópio, que foi o principal produto de exportação britânico para a China. O comércio do ópio foi imposto à China pela força e não pelo "livre mercado", da mesma forma como os sagrados princípios do mercado foram esquecidos quando a importação do ópio foi proibida na Inglaterra.

Em suma, a primeira grande experiência de desenvolvimento econômico foi uma "má ideia" para os governados, mas não para os seus criadores e para as elites locais a eles associadas. Esse padrão se mantém até hoje: coloca-se o lucro acima das pessoas. A consistência dessa crônica não é menos impressionante do que a retórica que aclama como "milagre econômico" a mais recente vitrina da democracia e do capitalismo e do que essa retórica geralmente esconde. O Brasil, por exemplo. Na elogiadíssima história da americanização do Brasil, Gerald Haines diz que os Estados Unidos vêm usando o Brasil desde 1945 como "área de teste para os modernos métodos científicos de desenvolvimento industrial baseado no capitalismo intensivo". Essa experiência foi levada a cabo "com a melhor das intenções". Os investidores estrangeiros se beneficiaria, mas os planejadores "acreditavam sinceramente" que o povo brasileiro também se beneficiaria. Não é necessário explicar como foi que se beneficiaram ao tornar o Brasil "a menina dos olhos da comunidade internacional de negócios na América Latina" sob o governo militar nas palavras dos jornais de negócio - enquanto o Banco Mundial relatava que dois terços da população não se alimentavam o bastante para suportar uma atividade física normal.

Em seu texto de 1989, Haines classificou a "política norte-americana para o Brasil como "extremamente bem-sucedida", "uma verdadeira história de sucesso americano". O ano de 1989 foi um "ano de ouro" aos olhos do mundo dos negócio, com lucros triplicados em relação a 1988 e uma redução de cerca de 20 por cento nos salários industriais, que já figuravam entre os mais baixos do mundo; a classificação do Brasil no Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano estava próxima à da Albânia. Quando o desastre começou a atingir os ricos, os "modernos métodos científicos de desenvolvimento baseado no capitalismo intensivo" (Haines) se transformaram de uma hora para outra em prova dos males do estatismo e do socialismo outra transição rápida que ocorre sempre que necessário.

Para apreciar esse avanço, devemos nos lembrar de que o Brasil há muito é reconhecidamente um dos países mais ricos do mundo, dotado de enormes vantagens, até mesmo meio século de influência e tutela dos Estados Unidos, que, com a melhor das intenções, por acaso estão uma vez mais a serviço do lucro da minoria, enquanto a maioria do povo é deixada na miséria.

O exemplo mais recente é o México, louvado como o primeiro aluno das regras do Consenso de Washington e apontado como modelos para os demais - enquanto os salários despencavam, a pobreza aumentava quase tão depressa quanto o número de bilionários e o capital estrangeiro afluía (a maior parte dele especulativa ou destinada à exploração da mão-de-obra barata mantida sob o controle por uma "democracia" brutal). Também ficou conhecido o colapso desse castelo de cartas em dezembro de 1994. Hoje, metade da população não atinge os níveis alimentares mínimos, ao passo que o homem que controla o mercado de grãos permanece na lista dos bilionários mexicanos, categoria na qual o país exibe uma elevadíssima posição.

As mudanças na ordem global trouxeram também a aplicação de uma versão do Consenso de Washington dentro dos próprios Estados Unidos. Há quinze anos os salários da maioria da população vêm estagnando ou diminuindo, assim como as condições de trabalho e segurança no emprego, quadro que se mantém apesar da recuperação da economia - um fenômeno sem precedente. A desigualdade atingiu níveis desconhecidos nos últimos setenta anos, muito superiores aos de outras nações industrializadas. Os Estados Unidos têm os mais elevados índices de pobreza infantil dentre todas as sociedades industriais, seguidos pelo resto do mundo de língua inglesa. E os índices vão percorrendo a conhecida lista de males do Terceiro Mundo. Enquanto isso, os jornais de negócios não conseguem encontrar adjetivos suficientemente exuberantes para descrever o crescimento "estonteante", "espetacular", dos lucros, embora admitam que os ricos também se defrontam com problemas: um título de Business Week anuncia O Problema Agora: O que Fazer com Tanto Dinheiro, pois a "expansão dos lucros" faz "transbordar os cofres da América das sociedades anônimas" e multiplicar os dividendos.

Os lucros continuavam sendo "espetaculares" em meados de 1996, com um "notável" crescimento nas maiores empresas do mundo, apesar de haver "uma área onde as companhias globais não se estão expandido muito: as folhas de pagamento", acrescenta sem muito alarde a mais importante revista mensal de negócios. Essa exceção inclui empresas que "tiveram um ano espetacular", com "lucros em rápida ascensão" e economia de força de trabalho, substituída por trabalhadores temporários sem direitos nem garantias trabalhistas, ou seja, o comportamento que se poderia esperar de "quinze anos de clara subjugação do trabalho pelo capital", para usar outra frase do jornalismo de negócios.


Noam Chomsky 
O lucro ou as pessoas | 1999
Trad.: Pedro J.