21.1.20

Brasil, país do futuro do pretérito


Cada vez mais temos a sensação que falar não diz mais nada. Assistimos à nossa volta — contra nós — a uma deterioração funcional da linguagem, reduzida a palavras de ordem (a palavras de caos) de ódio e desprezo. As proposições em circulação se medem por seu valor de mentira (só o falso mobiliza); o ressentimento se tornou o afeto veicular dominante; a falta de respeito dá o tom geral do que emana dos círculos supremos do poder. [...] Um governo que vai preparando o maior desrespeito aos direitos da população brasileira de que jamais se teve notícia. Um projeto verdadeiramente revolucionário: a desorganização geral da sociedade civil pelo Estado.

Mas como evitar repetir o que vem sendo dito por tanta gente mais qualificada do que eu sobre o que vem sendo cuspido pela máquina de ódio instalada no poder? Como não falar o que todo mundo já sabe, já ouviu, já leu, sobre a tempestade de abominações prometidas e realizadas que se vai abatendo sobre todos nós? Como continuar falando quando não há mais adjetivos suficientemente fortes para qualificar a situação e seus protagonistas? Quando cada manhã traz notícias mais mortificantes que as da manhã anterior; quando o ritmo das absurdidades anunciadas é tal que cada novo absurdo faz sombra ao precedente; quando cada pronunciamento indecoroso rapidamente esquecido distrai de uma calculada maldade de longa duração; quando cada vômito de ódio ideológico desvia a atenção das armadilhas econômicas que visam mais favorecimento aos já mais que favorecidos. White noise; ruído branco de grunhidos grosseiros como música de fundo, música de elevador, até que nos entorpeçamos e insensibilizemos enquanto nosso elevador vai descendo cada vez mais para o fundo — do poço. Mas é preciso ficar de ouvido atento, não parar de ouvir o que eles estão dizendo por baixo do que estão gritando. Pois o conteúdo do que dizem é perfeitamente adequado à forma. Como esta, ele é estúpido, violento e cínico.

Evoquemos rapidamente o que todo mundo já sabe: que o poder formal no Brasil foi tomado de assalto por um grupo político corrupto, cujo núcleo está ligado a organizações criminosas, as milícias, cuja origem deve ser buscada nos porões mais profundos do regime militar. Comandadas por membros ou ex-membros das chamadas “forças da ordem”, essas organizações, especialmente no Rio de Janeiro, fazem a segurança armada de figuras poderosas do capitalismo paralelo, extorquem sistematicamente as comunidades pobres, e praticam impunemente o assassinato por encomenda. (Hoje o assassinato de Marielle Franco completa exatamente um ano, e ainda “não sabemos” quem mandou matá-la). Esse grupo político no poder recebe sua legitimação intelectual via internet, da parte de charlatães dedicados à desmoralização do saber científico e humanístico cultivado pela universidade, engajados em uma “guerra cultural” contra toda forma de pensamento crítico. Charlatães e vigaristas que são, além disso, agentes do negacionismo climático pilotados pelo grande capital transnacional, o qual financia a disseminação da ignorância ou indiferença quanto ao problema mais grave já enfrentado pela espécie humana em sua breve carreira na Terra, a saber, as mudanças no regime termodinâmico do planeta provocadas pela matriz civilizacional hegemônica (o tecnocapitalismo extrativista). Esse movimento ideológico, habilmente difundido por meio das novas tecnologias de colonização cognitiva, encontrou ampla ressonância entre a considerável parcela do eleitorado simpática ao racismo, à homofobia e à misoginia, inimiga furiosa de qualquer forma de diferença que seja ao mesmo tempo um protesto contra a desigualdade, detestadora de toda forma de diversidade que não reitere e valide as versões contemporâneas da divisão originária e fundamental da sociedade brasileira, aquela entre senhores e escravos. 

O grupo político no poder está ainda, como se sabe, em relação de mutualismo ecológico com correntes pseudo-religiosas nas quais o fanatismo, o obscurantismo e a venalidade mais desavergonhada se combinam em proporções tóxicas; correntes que desviam o conforto espiritual oferecido pelas religiões evangélicas a um importante contingente das classes subalternas, invertendo o sentido da mensagem cristã e a canalizando para a sustentação de um movimento cuja “religião” é a intolerância, a violência e o desprezo pelos pobres. E, o mais importante de tudo, o grupo que foi colocado no poder está sendo usado e será eventualmente descartado pelos grandes interesses econômicos para levar a cabo o desmonte da Constituição Federal de 1988 e a subordinação de todas as relações sociais — e das vidas humanas a que elas dão sentido — à lógica do chamado Mercado. (A direita neoliberal é mais marxista que os marxistas, porque não apenas professa, como implanta à força a célebre determinação econômica em última instância. Ou melhor, em primeira e última instância. “A Vale é joia brasileira que não pode ser condenada por um acidente.”) Tudo isso, enfim, com o apoio estratégico de uma certa corrente castrense em reascensão, a dos generais herdeiros da “linha dura” — a linha que praticava o terrorismo de Estado — do período militar, agora com a farda coberta por um manto diáfano de sensatez e moderação.

Uma tempestade perfeita, como se diz. Um instinto infalível para escolher sempre o pior possível — o pior nome, a pior política, as piores ideias — quando se trata de garantir direitos coletivos, defesa das minorias, proteção socioambiental. Todas as forças do caos falando em nome da ordem. Ordenando em nome do caos. Uma indistinção entrópica, anômica, entre ordem e caos, hipocrisia ordinária e insanidade extraordinária, palavra e violência, notícia enviesada e mentira deslavada. Governo da mentira. Governo de mentira. Ninguém governa.

Esse novo governo está inteiramente a serviço dos interesses do grande capital financeiro, extrativista e agroindustrial, de um lado, e do forte lobby evangélico fundamentalista, de outro. O grande capital cobiça as terras indígenas, visando a expansão do extrativismo minerário e do agronegócio, em um contexto de privatização crescente das terras públicas. O lobby evangélico cobiça as almas indígenas, visando a destruição da relação de imanência entre humanos e não humanos, povo e território, de modo a universalizar a figura heteronômica de um cidadão-consumidor “brasileiro”, dócil ao Estado e servil ao capital. Esse colonialismo espiritual é acessório ao processo de expropriação territorial, mas é sobretudo uma arma estratégica da guerra movida pelo Estado a toda forma livre de vida. 

Os militares, por fim — o terceiro pilar deste triste governo —, persistem em ver nos índios, quando os vêem (pois gostam de imaginar que a Amazônia é um vazio demográfico), o ponto mais vulnerável na couraça da soberania nacional. Vêem a gente indígena como insuficientemente disciplinada pelo valores pátrios; vêem as terras indígenas como áreas com perigoso potencial de internacionalização, por insuficientemente domadas (estriadas) pela pata do boi, pelo trator e a colhetadeira, e pelo buraco da mineradora. É preciso que essas terras sejam devastadas para que se tornem governáveis. No Brasil — e não só aqui —, governar é criar desertos. O correlato territorial de todo Estado é sempre uma superfície abstrata, um deserto disponível para ser estriado pelo poder.

Eduardo Viveiros de Castro