21.5.20

Colapso da biodiversidade terrestre


Por duas vias complementares o capitalismo global erode a teia da vida animal e vegetal. Como consequência direta e imediata de suas atividades e como um modo reflexo e sistêmico de impacto sobre os habitats.

Consequências das atividades diretas

No desmatamento e no comércio de madeira da Amazônia e de todo o Brasil o lícito encobre o ilícito e com ele se entrelaça de modo inextricável. O mesmo ocorre na caça, na pesca e no tráfico de outras espécies silvestres. Em junho de 2014, um relatório conjunto do Pnuma e da Interpol realizou uma radiografia desse negócio - especializado sobretudo no tráfico do marfim e de madeiras tropicais - avaliando a magnitude dos valores envolvidos.

Na comunidade internacional há agora crescente reconhecimento de que o tráfico ilegal de vida selvagem atingiu proporções globais consideráveis. Esse tráfico e os crimes ambientais envolvem uma ampla gama de flora e de fauna em todos os continentes, cujo valor anual é estimado entre 70 bilhões e 213 bilhões de dólares. 

Na Colômbia, o tráfico de fauna e flora selvagem financiava as Farc até a pacificação; em Uganda, o Exército de Resistência do Senhor (LRA); na Somália, os Chabab; em Darfur, os djandjawids. A mesma simbiose entre tráfico e milícias se estabelece no Congo, na República Centro-Africana, no Mali e no Níger. Há muito a máfia russa lucra com o tráfico de esturjão e de caviar. Os crimes ambientais dessa natureza ter-se-iam multiplicado por cinco nos últimos 20 anos, segundo David Higgins, da Interpol.

Segundo a Agência de Notícias de Direitos Animais (Anda), o Brasil responde por 15% do tráfico de animais silvestres. De acordo com o relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), de 2011, existem três tipos de comércio ilegal de vida silvestre: (a) animais para zoológicos e colecionadores particulares; (b) biopirataria para uso científico, farmacêutico e industrial; (c) animais para petshops. Segundo esse relatório:

Levando-se em consideração apenas o tráfico de animais silvestres no Brasil, é estimado que cerca de 38 milhões de exemplares sejam retirados anualmente da natureza e que aproximadamente quatro milhões deles sejam vendidos. Baseado em dados sobre animais capturados e o seu preço, estima-se que, no Brasil, esse comércio movimenta cerca de US$ 2,5 bilhões/ano.

Mas há também o tráfico legal. Assim como o desmatamento da Amazônia é feito em grande parte com amparo da lei, assim também o tráfico de vida silvestre o é na África. Em 2008, por exemplo, Robert Mugabe, presidente do Zimbabwe, expediu para a China mais de oito toneladas de marfim ilegal como parte do pagamento de 3 milhões de balas de fuzil AK-47, 1.500 mísseis e 3.500 morteiros fornecidos pela Poly Technologies, uma empresa estatal chinesa de armamentos (a China é o 5º maior exportador de armas do mundo), conforme noticiado pelo The Zimbabwean, um jornal desse país.

A Convenção sobre o Comércio Internacional em Espécies Ameaçadas (Cites), cujas atividades tiveram início em 1975, lista em três Apêndices, segundo diversos graus de proteção, 30 mil espécies de plantas e cerca de 5.600 espécies animais. No Apêndice I, que contempla as espécies ameaçadas de extinção, encontramos 673 espécies e subespécies de animais e 305 espécies e subespécies de plantas. Ciente da gravidade da situação, em 2010, a Assembléia Geral da Interpol e, em 2012, a Rio+20 qualificaram como "graves" os delitos cometidos contra as espécies selvagens. Mas isso de pouco ou nada adianta no contexto de um constatado fracasso da luta contra o narcotráfico, facilitado ademais pela internet. Como os demais tráficos - de drogas, madeira, lixo eletrônico, armas e pessoas (prostituição, órgãos e tecidos) - esse também é de excepcional lucratividade e os governos dos países exportadores e importadores não dotam seus órgãos competentes com orçamentos compatíveis com suas funções de vigilância e repressão. Eles permanecem vulneráveis à corrupção e têm-se mostrado incapazes de desbaratar as quadrilhas e dissuadir os criminosos.

O sistema financeiro internacional

Os ganhos do tráfico de animais silvestres acabam nutrindo o sistema financeiro através de uma complexa rede de transfusões de recursos entre as diversas máfias, sejam estas de crimes ambientais ou de outro teor. Um estudo da Environmental Investigation Agency (EIA), de Londres, sobre a lavagem de dinheiro do tráfico ilegal de madeira em Papua mostra como "os vastos lucros desse comércio ilegal alimentam as contas de bancos de Singapura e de Hong Kong" através, num dos casos investigados, de 16 transferências bancárias. Mecanismos semelhantes ocorrem no tráfico de animais. Seus ganhos navegam pela rede das corporações financeiras internacionais e em simbiose com ela: o crime aporta os recursos e os bancos os legalizam e lucram com eles. Isto ficou evidenciado pelo conluio entre o crime organizado e o HSBC, conluio que, segundo Charles Ferguson, não é exclusivo desse banco. Como escrevia Neil Barofsky em dezembro de 2012, para a "Justiça", o HSBC is not only too big fail, but is also too big to jail. De fato, quando denunciados, seus diretores pagaram uma multa correspondente a algumas semanas de lucros, mas não foram réus de qualquer processo por atividade criminosa. O mecanismo high profit - low risk reforça a tácita simbiose entre o sistema financeiro e o crime organizado.

Consequências reflexas e sistêmicas

Mesmo quando a destruição das espécies vegetais e animais não é o foco de seu negócio, o capitalismo global é sistematicamente a causa principal de seu colapso. Um estudo de 2012 publicado na Nature mostra que cerca de um terço das espécies animais ameaçadas de extinção nos países "em vias de desenvolvimento" (developing nations) está nessa condição de decorrência do comércio internacional de bens manufaturados e de commodities. O estudo é o primeiro a detectar e a quantificar uma relação de causa e efeito entre 15 mil commodities produzidas para o comércio globalizado em 187 países e a ameaça a 25 mil espécies animais entre as registradas na Lista Vermelha da UICN. Orangotangos, elefantes e tigres de Sumatra estão nesta lista, por exemplo, como vítimas da degradação de seu habitat pelas plantações de palmeiras para a produção de óleo de palma e de madeira para celulose. A destruição pelo agronegócio do habitat dos elefantes-de-sumatra (Elephas maximus sumatranus), hoje reduzidos a apenas 2.400 a 2.800 indivíduos, foi da ordem de 69% nos últimos 25 anos. Sua extinção na natureza, prevista para 2015, não se confirmou, mas a UICN acaba de reclassificar a situação desses animais, colocando-os não já na categoria "ameaçados", mas "criticamente ameaçados" (critically endangered).

Luiz Marques | Capitalismo e colapso ambiental
Editora Unicamp