1951
Hitler [...] inventou o movimento perpétuo da conquista, sem o qual ele nada teria sido. Mas o inimigo perpétuo é o Terror perpétuo, desta vez no nível de Estado. O Estado identifica-se com “o aparelho”, isto é, com o conjunto de mecanismos de conquista e de repressão. A conquista dirigida para o interior do país chama-se propaganda (“o primeiro passo em direção ao inferno”, segundo Frank) ou repressão. Dirigida para o exterior, cria o exército. Todos os problemas são, dessa forma, militarizados, colocados em termos de poderio e de eficácia. O comandante-geral determina a política e, aliás, todos os principais problemas de administração. Este princípio, irrefutável quanto à estratégia, é generalizado na vida civil. Um único líder, um único povo significa um único senhor e milhões de escravos. Os intermediários políticos que, em todas as sociedades, são as salvaguardas da liberdade desaparecem, dando lugar a um Jeová de botas, que reina sobre multidões silenciosas ou, o que dá no mesmo, limitadas a gritar palavras de ordem. Não se interpõe entre o chefe e o povo um organismo de conciliação ou de mediação, mas justamente o aparelho, quer dizer, o partido, que é opressor.
Mussolini, jurista latino, contentava-se com a razão de Estado, e o transformava apenas, com muita retórica, em absoluto. “Nada além do Estado, acima do Estado, contra o Estado. Tudo ao Estado, para o Estado, no Estado.” A Alemanha hitlerista deu a essa falsa razão sua verdadeira linguagem, que era a de uma religião. “Nossa missão divina”, escreve um jornal nazista durante um congresso do partido, “era reconduzir cada qual às suas origens, às Mães. Era realmente uma missão divina.” As origens, no caso, estão no grito primal. De que deus se trata? Uma declaração oficial do partido nos responde: “Todos nós, aqui embaixo, acreditamos em Adolf Hitler, nosso Führer... e (nós confessamos) que o nacional-socialismo é a única fé que leva o nosso povo à salvação.” Os mandamentos do chefe, de pé na sarça ardente dos projetores, sobre um Sinai de tábuas e de bandeiras, determinam então a lei e a virtude. Se os microfones sobre-humanos ordenam uma só vez o crime, então, de chefes para subchefes, o crime desce até o escravo, que recebe as ordens sem dá-las a ninguém. Um dos verdugos de Dachau chora, em seguida, na prisão: “Só cumpri ordens. O Führer e o Reichsführer foram os únicos a produzir tudo isto, depois se foram. Glueks recebeu ordens de Kaltenbrunner, e, finalmente, eu recebi a ordem de fuzilar. Eles me passaram todas as ordens, porque eu era apenas um pequeno Hauptscharführer e não havia mais ninguém abaixo de mim a quem pudesse transmiti-las. Agora, eles dizem que sou eu o assassino.” Goering no julgamento declarava sua fidelidade ao Führer, dizendo que “existia ainda um código de honra nesta vida maldita”. A honra estava na obediência, que às vezes se confundia com o crime. A lei militar pune com a morte a desobediência, e sua honra é servidão. Quando todos são militares, o crime é não matar se a ordem assim o exigir.
A ordem, por desgraça, raramente exige que se faça o bem. O puro dinamismo doutrinário não pode se dirigir para o bem, mas somente para a eficácia. Enquanto houver inimigos haverá terror; haverá inimigos enquanto o dinamismo existir, e, para que ele exista, “todas as influências suscetíveis de enfraquecer a soberania do povo, exercida pelo Führer, com a ajuda do partido... devem ser eliminadas”. Os inimigos são hereges, devem ser convertidos pela pregação ou pela propaganda; exterminados pela inquisição ou, em outras palavras, pela Gestapo. O resultado é que o homem, se for membro do partido, não passa de um instrumento a serviço do Führer, uma engrenagem do aparelho; ou, se inimigo do Führer, um produto de consumo do aparelho. O arrebatamento irracional, nascido da revolta, só se propõe a reduzir aquilo que faz com que o homem não seja uma engrenagem, isto é, a própria revolta. O individualismo romântico da revolução alemã se realiza, finalmente, no mundo das coisas. O terror irracional transforma os homens em coisas, em “bacilos planetários”, segundo a fórmula de Hitler. Ele se propõe a destruir não apenas a pessoa, mas também as possibilidades universais da pessoa, a reflexão, a solidariedade, o apelo ao amor absoluto. A propaganda e a tortura são meios diretos de desintegração; mais ainda a degradação sistemática, o amálgama com o criminoso cínico, a cumplicidade forçada. Aquele que mata ou tortura só conhece uma sombra em sua vitória: não pode se sentir inocente. Logo, é preciso criar a culpabilidade na própria vítima, para que, num mundo sem rumo, a culpabilidade geral legitime apenas o exercício da força, consagre apenas o sucesso. Quando a ideia de inocência desaparece no próprio inocente, o valor de poder reina definitivamente num mundo desesperado. É por isso que uma ignóbil e cruel penitência reina neste mundo, em que apenas as pedras são inocentes. Os condenados são obrigados a enforcarem-se uns aos outros. O próprio grito puro da maternidade é sufocado, como no caso da mãe grega que foi forçada por um oficial a escolher qual dos três filhos seria fuzilado. É assim que, finalmente, se fica livre. O poder de matar e de aviltar salva a alma servil do nada. A liberdade alemã é então cantada ao som da orquestra de prisioneiros nos campos da morte.
Os crimes hitleristas e, entre eles, o massacre dos judeus, não têm equivalente na história, porque a história não tem nenhum exemplo de uma doutrina de destruição total que tenha sido capaz de apoderar-se das alavancas de comando de uma nação civilizada. Mas, sobretudo, pela primeira vez na história os governantes de um país utilizaram o seu imenso poder para instaurar uma mística fora de qualquer moral. Esta primeira tentativa de uma Igreja construída sobre o nada pagou-se com a própria aniquilação. A destruição de Lidice mostra efetivamente que a aparência sistemática e científica do movimento hitlerista encobre, na verdade, um movimento irracional, que só pode ser o movimento do desespero e do orgulho. Diante de uma aldeia supostamente rebelde, só se imaginavam até então duas atitudes do conquistador. Ou bem a repressão calculada e a fria execução dos reféns ou o saque selvagem, e obrigatoriamente breve, de soldados enfurecidos. Lidice foi destruída pelos dois sistemas conjugados. Ela ilustra as devastações dessa razão irracional que é o único valor encontrado na história. As casas foram incendiadas, 174 homens da aldeia fuzilados, 203 mulheres deportadas e 103 crianças transferidas para serem educadas na religião do Führer. Além disso, equipes especiais passaram meses de trabalho nivelando o terreno a dinamite, destruindo as pedras, aterrando o lago, desviando finalmente o curso do rio. Lidice, depois disso, não era realmente mais nada, a não ser um mero futuro, segundo a lógica do movimento. Para maior segurança, esvaziou-se o cemitério de seus mortos, porque estes lembravam ainda que algo existira nesse lugar.
A revolução niilista, que se expressou historicamente na religião hitlerista, só suscitou, dessa forma, um furor insensato pelo nada, que acabou voltando-se contra si mesmo. A negação, dessa vez, pelo menos, e apesar de Hegel, não foi criadora. Hitler exemplifica o caso, talvez único na história, de um tirano que não deixou nenhum saldo. Para si mesmo, para o seu povo e para o mundo, ele foi apenas suicida e assassino. Sete milhões de judeus assassinados, sete milhões de europeus deportados ou assassinados, dez milhões de vítimas da guerra não seriam suficientes para que a história o julgasse: a história está acostumada com assassinos. Mas a própria destruição das justificações últimas de Hitler, isto é, da nação alemã, a partir de agora faz desse homem, cuja presença histórica assombrou durante anos milhões de homens, uma sombra inconsistente e miserável. O depoimento de Speer no julgamento de Nuremberg mostrou que Hitler, embora tivesse a possibilidade de sustar a guerra antes do desastre total, quis o suicídio geral, a destruição material e política da nação alemã. Para ele, o único valor, até o fim, foi o sucesso. Já que a Alemanha perdia a guerra, era covarde e traidora, logo, merecia morrer. “Se o povo alemão não é capaz de vencer, não é digno de viver.” Hitler decidiu, portanto, arrastá-lo para a morte e fazer de seu suicídio uma apoteose, quando os canhões russos já derrubavam as paredes dos palácios berlinenses. Hitler, Goering, que queria ver seus ossos colocados em um túmulo de mármore, Goebbels, Himmler, Ley se matam nos subterrâneos ou em celas. Mas essa morte é uma morte para nada, é como um pesadelo, uma fumaça que se dissipa. Nem eficaz nem exemplar, consagra a vaidade sanguinária do niilismo. “Eles se julgavam livres”, grita histericamente Frank. “Eles não sabem que ninguém se liberta do hitlerismo!” Eles não o sabiam, assim como não sabiam que a negação de tudo é servidão, e a verdadeira liberdade, uma submissão interior a um valor que enfrenta a história e seus sucessos.
Mas as místicas fascistas, se bem que tenham visado dominar o mundo pouco a pouco, nunca pretenderam realmente construir um Império universal. No máximo, Hitler, impressionado com as próprias vitórias, desviou-se das origens provincianas de seu movimento, rumo ao sonho impreciso de um Império dos alemães, que nada tinha a ver com a Cidade universal. O comunismo russo, pelo contrário, por suas próprias origens, pretende abertamente consolidar o império mundial. Esta é sua força, seu significado profundo e sua importância na nossa história. Apesar das aparências, a revolução alemã não tinha futuro. Era apenas um ímpeto primitivo, cujas devastações foram maiores do que suas ambições reais. O comunismo russo, ao contrário, assumiu a ambição metafísica que este ensaio descreve, a edificação, após a morte de Deus, de uma cidade do homem enfim divinizado. Esse nome de revolução, ao qual a aventura hitlerista não pode aspirar, o comunismo russo o mereceu e, embora aparentemente não o mereça mais, pretende merecê-lo um dia, e para sempre. Pela primeira vez na história, uma doutrina e um movimento apoiados por um Império armado propõem-se como objetivo a revolução definitiva e a unificação final do mundo. Resta-nos examinar detalhadamente essa pretensão. Hitler, no auge de sua loucura, quis estabilizar a história por mil anos. Ele julgava estar a ponto de fazê-lo, e os filósofos realistas das nações vencidas preparavam-se para tomar consciência disso e absolvê-lo, quando a batalha da Inglaterra e Stalingrado atiraram-no à morte, fazendo com que a história se pusesse novamente em marcha. Mas, tão incansável quanto a própria história, a pretensão humana à divinização ressurgiu, com mais seriedade e maior eficácia, sob a forma do Estado racional, tal como foi edificado na Rússia.
Albert Camus
Trad.: Valerie R.
