6.6.20

Prosa


Um texto que tivesse a indestrutibilidade de uma câmara espiritual, que fosse como uma ponte de ornamentos sobre um rio nublado, em que os vocábulos valessem por seus sons, mas não faltassem a ele estilhaços ficcionais e conseguisse seu autor dar vida a uma mulher que não fosse um simples reflexo do seu desejo. E, sobretudo, não apelasse ele para a pornografia, nem sequer para as enfadonhas descrições eróticas.

Um texto a deixar os pares do autor indecisos entre negá-lo ou aderir a ele, de modo a não correr o risco de uma avaliação prematura que pudesse fazê-los perder o caminho da história.

Um texto que já superasse a tradição moderna, mas não se filiasse a nenhuma outra, pelo contrário, pairando no momento zero de indefinição sobre qual cedo ou tarde se inscreverá a palavra inaugural que ainda não se vislumbrou.

Um texto que não servisse de mero entretenimento, como os das novelas policiais, em que se disfarçam a feiura e o odor de cadáveres, nem o texto do riso fácil dos idiotas. Um texto que não fosse mais um entre tantos contos ou romances, que nada acrescentariam ao corpus da literatura.

Mas não um texto abstrato ou suprarreal, talvez algo escultórico, no momento imediatamente anterior ao primeiro sopro depois da calmaria, no limiar exato da transformação.

E sinto que não serei eu a realizá-lo, mas, por acaso, não me bastará este pressentimento, permitindo que eu repouse como um criador no silêncio da alta noite, que, no entanto, não é bem silêncio, mas o som do fluir da corrente sanguínea?

Sérgio Sant'Anna
2014