7.7.20

O líder fascista como encarnação da verdade



Escrevo estas linhas do centro da pandemia do coronavírus. Estou confinado no meu apartamento em Nova York, onde moro e trabalho há 14 anos. Este é um momento que parece diferente de todos os outros e que em breve será um capítulo passado de uma história mais longa, que tem contato direto com a história do fascismo.

Uma das lições centrais da história do fascismo é que a mentira leva à violência política extrema. Hoje a mentira voltou ao poder. Esta é, agora mais do que nunca, uma lição-chave da história do fascismo. Se quisermos compreender o nosso problemático presente, temos que prestar atenção na história dos ideólogos fascistas e no modo e no motivo pelo qual sua retórica levou ao Holocausto, à guerra e à destruição. Precisamos que a história nos lembre como foi possível haver tanta violência e racismo num período tão curto de tempo. Como os nazistas e outros fascistas chegaram ao poder e assassinaram milhões de pessoas? Espalhando mentiras ideológicas. Numa proporção significativa, o poder político fascista surgiu da cooptação da verdade e da disseminação generalizada da mentira.

Hoje assistimos à emergência de uma onda de líderes populistas de direita em todo o mundo. E, como no caso dos líderes fascistas do passado, grande parte do seu poder político provém da impugnação da realidade, da defesa do mito, da raiva e da paranoia – e da promoção da mentira.

Um eixo central dessa história, que parece se repetir em países como os Estados Unidos e o Brasil, é a ideia de um líder que se considera a encarnação da verdade e, com suas mentiras, enfraquece a democracia e chega até a estimular a expansão da covid-19. Essa crença tem consequências letais e nos ajuda a entender melhor a situação do Brasil. Isto é, a partir da análise das mentiras do fascismo no passado podemos entender melhor nosso estranho presente. O passado e o presente apresentam odiosas convergências na forma como o poder nega a realidade e como essas negações acabam transformando-a, provocando e até mesmo ampliando desastres. Os fascistas fantasiaram novas realidades e depois transformaram a verdadeira. Seus sucessores, como Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro, querem fazer a mesma coisa.

Na negação da pandemia, em particular, vemos uma lógica parecida: nega-se a realidade letal do coronavírus, o que causa catástrofes e mortes. Como argumentamos com o filósofo americano Jason Stanley: “Durante a crise, Trump esteve fora de juízo, oscilando incoerentemente entre a negação e os pedidos de ação decisiva e, mais recentemente, especulando que o coronavírus poderia ser tratado com a injeção de desinfetantes domésticos. E, no entanto, ele e Bolsonaro canalizam o mesmo impulso político de se colocar acima da ciência e da experiência, exaltando seus próprios instintos e justificando suas decisões com fé e mitos. Embora suas ‘estratégias’ sejam superficialmente distintas, ambas compartilham um contexto histórico fascista, que se concentra no culto de um líder e no mito da grandeza nacional – uma grandeza que supostamente foi comprometida pelo internacionalismo e pelo liberalismo (que os fascistas igualam ao comunismo).”

Nos anos 1930 e 1940, Hitler e muitos fascistas pelo mundo culpavam a democracia e a esquerda por todos os males, vendo nos mitos antissemitas a encarnação da verdade – o que o filósofo judeu alemão Ernst Cassirer chamava de “um mito conforme o plano”. Assim, reformularam as fronteiras entre mito e realidade. O mito substituía a realidade mediante políticas destinadas a reconfigurar o mundo em função das mentiras em que os racistas acreditavam. Se, segundo as mentiras antissemitas, os judeus eram intrinsecamente sujos, transmitiam doenças e, portanto, deviam ser assassinados, os nazistas criaram com os guetos e os campos de concentração as condições para que a sujeira e o contágio se tornassem realidade. Esfomeados, torturados e radicalmente desumanizados, os judeus segregados se transformaram naquilo em que os nazistas haviam planejado que se transformassem – e por isso foram assassinados.

Buscando uma verdade que não coincidisse com o mundo vivido, os fascistas começaram a fazer das metáforas uma realidade. Não havia nada de verdadeiro nas falsidades ideológicas fascistas, mas seus partidários queriam que essas mentiras fossem as mais reais possíveis. Aquilo que viam e não lhes agradava, tratavam como não verdadeiro. Mussolini argumentava que uma tarefa central do fascismo era negar as mentiras do sistema democrático. Também contrapunha a verdade do fascismo à “mentira” da democracia. O princípio de encarnação da verdade sagrada na pessoa do chefe era central na oposição mítica que Il Duce propunha entre as “mentiras” democráticas e a “verdade” fascista. Acreditava em uma forma de verdade que extrapolava o senso comum democrático porque era transcendental. “Em determinado momento da minha vida”, lembrava ele, “corri o risco de ficar impopular com as massas ao anunciar-lhes o que eu acreditava que era a nova verdade, uma verdade santa [la verità santa]”.

Para Mussolini, a realidade devia obedecer a imperativos míticos. É o mesmo que fazem Bolsonaro e seus seguidores. Não é por acaso que o presidente brasileiro começa suas falas com citações bíblicas sobre uma verdade que, por seu intermédio, se revela transcendental. O fascismo e agora também o bolsonarismo propõem uma ideia de verdade que transcende a razão e encarna o mito do líder. O mito literalmente se incorpora à pessoa do dirigente, e isso gera uma cegueira empírica no líder e em seus seguidores. Inimigos e acontecimentos não são verdadeiros sujeitos, na medida em que não personificam a potência nacional autêntica que supostamente surge do eu fascista encarnado no líder.

No fascismo, o papel do dirigente, “o homem mais forte”, derivava da “ordem natural”. A linguagem de Hitler sugeria que a convicção do povo – de que o líder era a única pessoa que realmente importava – parecia uma forma de renovação religiosa. Antes de sua intervenção pública, o líder deve ter surgido de uma “urgência psíquica” popular. Para Hitler, as nações que não puderam encontrar uma “solução heroica” eram “impotentes”. O contrário da impotência era a satisfação dos desejos políticos por meio da encarnação de todo o povo na pessoa do líder: “Um dia o destino abençoa o homem dotado para essa tarefa, que finalmente traz a tão ansiada satisfação”. Para Hitler, o advento desse homem era resultado de uma luta mítica, um destino trans-histórico que não podia ser corroborado pelos fatos. O dirigente era “o melhor”, e a história o colocava no “lugar a que pertencia. Assim será sempre, assim continuará sendo eternamente e assim tem sido.” Nessa visão mítica feita de conexões lineares entre passado e presente, Hitler contrapunha a “verdade” à “chamada sabedoria humana”. A história incluía lutas conscientes e “lutas inconscientes pela hegemonia”.

Assim como Bolsonaro, que mente constantemente sobre a ditadura brasileira, os fascistas queriam impor sua doutrina à narrativa histórica. Para eles, a verdade era uma forma absoluta de reconhecimento interno. A verdade só podia ser uma autêntica expressão de ideologia, especialmente das ideias dos líderes.

A noção de uma verdade mítica encarnada no líder certamente não era europeia, e sim um traço do fascismo transnacional. A autenticidade não era resultado de uma demonstração, mas a afirmação de uma essência sagrada expressa pelo líder. Quando pensamos na maneira como Bolsonaro usa os textos sagrados do cristianismo para se justificar, é importante lembrar que pouco há de novo nessa estratégia fascista. Na Índia, o fascista indo-muçulmano Khan al-Mashriqi falava de uma forma de verdade superior que somente a sua liderança podia revelar: “O Corão, que só pode, eventualmente, se configurar naquelas mentes que tenham visto cada esquina e cada recanto deste cosmos glorioso, que tenham adquirido um conhecimento substancial dos mistérios do Livro da Natureza, que tenham sido alçadas, pelas alturas majestosas do conhecimento e as grandes visões da realidade última, até o mais alto horizonte dos céus e das estrelas, e que, imperturbáveis ante os tecnicismos da modesta lógica, persigam a finalidade da verdade absoluta”. Este uso da palavra “verdade” para promover a mentira em nome de Deus é importante para se pensar a ideia bolsonarista de que a verdade liberta. Por isso, “o mito” cita obsessivamente, sempre que pode, um versículo da Bíblia, o Evangelho de João 8:32, que diz: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. Para o fascismo, a mentira que o líder diz se apresenta como a verdade mais absoluta, e de fato é difícil não comparar essa mentira em nome do sagrado com as palavras que as vítimas do nazismo podiam ler ao entrar em Auschwitz: “O trabalho liberta”. 

Os fascistas viam no líder encarnado uma verdade que transcendia os fatos, mas também (eles ou ele) manipulavam os fatos para criar uma verdade mais elevada. Para isso, se apropriavam, como faz Bolsonaro, de metáforas e pensamentos religiosos. Essa crença numa forma de verdade sagrada tem claras conotações teológicas cristãs. Na Bíblia, a verdade do Senhor contrasta com as mentiras dos homens: “De modo algum! Seja Deus verdadeiro, e todo homem mentiroso.” Os que não acreditam na verdade de Deus são literalmente demonizados: “Quem é o mentiroso, senão quem nega que Jesus é o Cristo? Esse é anticristo, que nega o Pai e o Filho.” As mentiras dos infiéis emanavam do diabo. Eles queriam julgar segundo os padrões humanos e se opunham à compreensão verdadeira que só a fé podia proporcionar: “Por que não entendeis minha linguagem? Porque não podeis escutar minha palavra. Vós sois do vosso pai, o diabo, e os desejos do vosso pai quereis realizar. Ele foi homicida desde o começo, e não permaneceu na verdade, porque não há verdade nele. Quando fala mentiras, de si fala; porque é mentiroso e pai de mentira.” A ideia de verdade do fascismo provinha dessa série tradicional de oposições entre verdade divina e mentiras demoníacas.

Por outro lado, o fascismo, e agora o bolsonarismo, se apropriam do cristianismo e o descontextualizam para realizar seus propósitos autoritários e repressivos. Ou seja, ao criarem o culto ao líder, criam sua própria religião política, estabelecendo uma “verdade” ideológica como se fosse uma revelação. Se o líder encarnava uma verdade eterna, os fascistas concluíam que seus críticos mentiam, considerando-os inimigos da verdade. Se essas verdades emanavam do líder, os fascistas tinham que criar inimigos e defini-los como encarnações vivas da falsidade. Esses inimigos constituíam, portanto, contraencarnações que contribuíam para enaltecer o líder como dono de uma verdade sagrada.

Como afirma Jason Stanley, essa “política do amigo e do inimigo” é uma chave essencial para se entender o fascismo. E suas consequências são mortais: “A peculiar antipatia do fascismo pela verdade não é um recurso adicional da ideologia. É consequência direta da centralidade, para o fascismo, da distinção amigo/inimigo. A verdade serve como uma espécie de juiz neutro nos debates. Se os participantes respeitam a verdade, sem exceção, a disputa é mais justa para todos. Um debate em que se respeita a verdade raramente adquire os contornos de uma guerra, porque os adversários, mediados por seu respeito mútuo pela verdade, podem chegar a um acordo. No entanto, para o fascismo, a centralidade da distinção amigo/inimigo implica que a única forma possível de disputa política é a guerra. Numa disputa amigo/inimigo não há concessão, nem acordo, nem valores comuns. A verdade é a primeira vítima de uma ideologia que coloca em seu centro a guerra entre amigo e inimigo.”

Líderes como Bolsonaro ou Trump substituem a história pelo mito. O passado se tornou uma parte indispensável daquilo que Hannah Arendt definia como a fabricação e a centralização da mentira. Arendt pensava que, quando passam a acreditar nessas mentiras, os seguidores dos líderes tornam-se incapazes de ver a realidade como tal. Nesse contexto, os políticos, dizia Arendt, usam a “falácia deliberada como arma contra a verdade”. Como afirma a historiadora Ruth Ben-Ghiat, a propósito da profunda conexão de Trump com as máquinas de propaganda de Estados autoritários do passado, “desde que assumiu o cargo, Trump montou um aparato de informação que os apresenta, ele e seus fiéis, como os únicos árbitros da verdade e que tacha seus críticos de partidários fabricantes de falsidades”. Bolsonaro faz o mesmo. Nesse mundo revisionista, as concepções mais irracionais, messiânicas e paranoides aparecem falsamente como história e como realidade. 

Os líderes fascistas proeminentes do século 20 – de Mussolini a Hitler – consideravam que as mentiras eram a verdade tal como se encarnava neles mesmos. Essa ideia era fundamental para suas concepções do poder, da soberania popular e da história. Criavam um universo alternativo no qual verdade e falsidade não podem ser distinguidas. Um universo de fantasia que obedece à lógica do mito encarnado no líder. No fascismo, a verdade mítica substitui a verdade factual. Quando os fatos se apresentam como fake news e certas ideias geradas por quem nega os fatos se transformam em políticas de governo, devemos lembrar que tudo o que se diz hoje sobre a “pós-verdade”, em especial as mentiras sobre o coronavírus, tem uma linhagem política e intelectual no fascismo. O negacionismo sobre a pandemia é o capítulo mais recente da história das mentiras fascistas.

Federico Finchelstein
Trad.: Ari R. e Paulina W.