10.7.20

Pesticidas industriais


Os inseticidas organoclorados e organofosforados, e os herbicidas baseados em hormônios sintéticos nascem nos anos 1920-1940 como resultados das pesquisas sobre armas químicas usadas durante a Primeira Grande Guerra pelos dois campos beligerantes. No período entreguerras, armas químicas continuaram a ser utilizadas pela aviação inglesa, por exemplo, em 1919 contra os bolcheviques e em 1925 contra a cidade de Sulaimaniya, capital do Kurdistão iraquiano; a aviação italiana utilizou-as em 1935 e 1936 em sua tentativa de exterminar a população da Etiópia, e o exército bolchevique, segundo uma documentação aparentemente confiável, dizimou com armas químicas os revoltosos de Tambov, uma das 118 revoltas camponesas contra o exército vermelho reportadas pela Cheka, em fevereiro de 1921.

O exemplo dos grandes conglomerados de corporações alemãs criados após a Primeira Grande Guerra para devolver à Alemanha sua supremacia na indústria química é proverbial. Em seu quadro de cientistas, a Degesh (Deutsche Gesellschaft für Schädlingsbekämpfung - Sociedade Alemã para o Controle de Pragas), criada em 1919, contava químicos como Fritz Haber (Prêmio Nobel) e Ferdinand Flury, que desenvolveu em 1920 o Zyklon A, um pesticida à base de cianureto, precedente imediato de outro inseticida, o Zyklon B, patenteado em 1926 por Walter Heerdt e usado sucessivamente nas câmaras de gás dos campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau e Majdanek. Outro exemplo é o da IG Farben, de cujo desmembramento após 1945 resultou a Agfa, a BASF, a Hoechst e a Bayer. Para esse conglomerado industrial alemão, em seu tempo a quarta corporação do mundo, trabalhavam químicos como Gerhard Schrader (1903-1990), funcionário da Bayer e responsável pela descoberta e viabilização industrial dos compostos de organofosforados que agem sobre o sistema nervoso central. De tais compostos derivam pesticidas como o bladan e o parathion (E 605) e armas químicas como o Tabun (1936), o Sarin (1938), o Soman (1944) e o Cyclosarin (1949), as três primeiras desenvolvidas, ainda que não usadas, pelo exércitos alemão na Segunda Grande Guerra. Após a guerra, Schrader foi por dois anos mantido prisioneiro dos Aliados, que o obrigaram a comunicar-lhes os resultados de suas pesquisas sobre ésteres de fosfato orgânicos.

Uma ameaça crescente

Há mais de 50 anos, isto é, ao menos desde o célebre livro de Rachel Carson, Primavera Silenciosa (1962), sabemos que os pesticidas industriais lançaram a espécie humana numa guerra biocida, suicida e de antemão perdida. Como bem diz seu nome, um pesticida industrial é um produto químico que visa exterminar uma "peste", termo que designa no jargão produtivista toda espécie que compita com a humana pelo mesmos alimentos ou tenha algum potencial de ameaça à produtividade ou saúde humana ou de espécies que servem de alimentação aos homens. Dada a impotência humana de exterminá-las, pesticidas tentam controlar as populações de uma ou mais espécies visadas ou afastá-las de uma dada plantação ou criação. O princípio dá prova cabal da insanidade da agricultura industrial: envenenar-se nossos alimentos para impedir que outras espécies os comam. As doses do veneno, pequenas em relação à massa corpórea humana, não nos matam. Mas, ao atirarem numa espécie com uma metralhadora giratória, os pesticidas provocam "danos colaterais": matam ou debilitam espécies não visadas, provocando desequilíbrios sistêmicos que promovem seleções artificiais capazes de reforçar a tolerância das espécies visadas, ou a invasão de espécies oportunistas, por vezes tão ou mais ameaçadoras  para as plantações que as espécies visadas pelos pesticidas. Além disso, a médio e longo prazo os pesticidas intoxicam o próprio homem, como o demonstra hoje uma suma de pesquisas científicas, tanto mais porque somos obrigados a aumentar as doses dos pesticidas e a combiná-los com outros em coquetéis cada vez mais tóxicos, à medida que as espécies visadas se tornam tolerantes à dose ou ao princípio ativo anterior.

Em 2013, um artigo publicado na Pnas em 17 de junho refere-se ao morticínio de diversas espécies causados por pesticidas, mesmo utilizados em concentrações consideradas seguras pela legislação europeia:
Pesticidas causam efeitos estatisticamente significantes em espécies e em famílias em ambas as regiões [Europa e Autrália], com perdas de até 42% nas populações taxonômicas registradas. Além disso, os efeitos na Europa foram detectados em concentrações que a atual legislação considera ambientalmente protetiva. Portanto, a atual avaliação de risco ecológico de pesticidas falha proteger a biodiversidade, tornando necessárias novas abordagens envolvendo ecología e ecotoxicologia.

Enfim, em 2014, um grupo internacional de trabalho de quatro anos sobre os pesticidas sistêmicos, o Task Force on Systemic Pesticides (TFSP), reunindo 29 pesquisadores, declara em seus resultados que os pesticidas sistêmicos constituem uma inequívoca e crescente ameaça tanto à agricultura quanto aos ecossistemas. Jean-Marc Bonmatin, um pesquisador do CNRS pertencente a esse grupo de trabalho, assim resumiu esses resultados:
A evidência é clara. Estamos testemunhando uma ameaça à produtividade de nosso ambiente natural e agrícola, uma ameaça equivalente à dos organofosfatos ou DDT. Longe de proteger a produção de alimentos, o uso de inseticidas neonicotinoides está ameaçando a própria infraestrutura que permite essa produção.

Uso descontrolado dos pesticidas nos EUA e no Brasil

Em 1976, o presidente Gerald Ford assinou a Toxic Substances Control Act (TSCA), marco legal regulatório dos níveis de uso de agentes químicos considerados seguros para a população humana. Essa lei, referência de outras legislações fora dos EUA, está defasada em relação ao que se sabe hoje sobre a ação tóxica desse agentes sobre os organismos. Dois anos depois, o Congresso norte-americano autorizou a EPA a se valer de uma cláusula de licenças condicionais (conditional registration) para licenciamentos de pesticidas em casos de eminente ameaça à saúde pública, abreviando os procedimentos ordinários de homologação de pesticidas em conformidade com o Federal Inseticide, Fungicide and Rodenticide Act (Fifra), lei estabelecida em 1947 e, sob outra redação, em 1972. As corporações souberam aproveitar a brecha, obtendo da EPA a aprovação nesse regime de urgência de 65% dos 16 mil pesticidas atualmente disponíveis no mercado norte-americano, conforme uma pesquisa da Natural Resources Defense Council (NRDC), publicada em 2013, baseada na qual essa ONG move hoje uma ação contra a EPA. De resto, essa agência admite ter utilizado a cláusula de liberação condicional de pesticidas em 98% dos casos entre 2004 e 2010.

No Brasil, a situação é a pior do mundo em quantidade de agrotóxicos utilizados e uma das piores do mundo, talvez a pior, em permissividade. "O Brasil é o campeão mundial no uso de produtos químicos na agricultura", afirma José Roberto Parra, ex-diretor da Esalq-USP. O Brasil participa com apenas 4% do comércio mundial do agronegócio, mas consome hoje cerca de 20% de todo agrotóxico comercializado no mundo todo.

No Brasil, entre 2000 e 2012, segundo um estudo coordenado por Vicente Eduardo Soares, da Embrapa, "o crescimento acumulado do uso de agrotóxicos foi mais que três vezes maior que o aumento de produtividade e mais de dez vezes maior que o crescimento populacional para o mesmo período". Além disso, segundo o mesmo estudo, entre 2000 e 2012, o uso de agrotóxicos em quilos por área agrícola (kg/ha) mais que dobrou. Em 2000, ele era de 6,09 kg/ha; em 2012, de 15,97 kg/ha. Esse crescimento explosivo foi impulsionado por isenções fiscais federais e por algumas isenções estaduais. A produção e o comércio de pesticidas beneficiam-se no Brasil de uma redução de 60% do ICMS e de isenção total do PIS/Cofins e do IPI.

Os dois pesticidas mais usados no Brasil - glifosato e 2,4-D - são comprovadamente nocivos à saúde dos organismos.

Mais da metade dos agrotóxicos usados no Brasil hoje são banidos em países da União Europeia e nos Estados Unidos.

Dentre os efeitos associados à exposição crônica a ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer.


Luiz Marques | Editora da Unicamp