17.6.25

Álcool, a droga por excelência


Juridicamente, no plano das substâncias tóxicas, o álcool desfruta, no Ocidente, de uma espécie de status monoteísta, o deus único, diante do qual todos os demais devem desaparecer. É o único tóxico não apenas permitido mas de uso estimulado em escalas nunca vistas. Boa parte da publicidade está voltada para o estímulo ao uso de álcool. Seus efeitos são associados a todas as situações prazenteiras da vida, o encontro amoroso, os ritos de amizade, o fim do trabalho, o domingo, o lazer, o feriado, todos os eventos cerimoniosos, tanto na área pública como na privada, consistem num coquetel, isto é, numa reunião onde, sobretudo, vai se tomar álcool, o tóxico dominante. Nenhum tóxico está cercado de uma aura mitológica tão grande: as técnicas ancestrais para obtenção de vinhos, champanhes e conhaques; a linhagem nobre das vodkas eslavas; os rigorosos rituais para a produção dos verdadeiros whiskies escoceses; a pureza caipira da cachaça de alambique e o legítimo lúpulo das cervejas.

Não importa que o álcool seja, evidentemente, o tóxico mais responsável por crimes, principalmente interpessoais, assassinatos inexplicáveis, agressão gratuita, acessos de vandalismo, que os jornais noticiam diariamente. Boa parte da publicidade impressa ou televisada dos anos 1970 foi dedicada ao estímulo do uso de álcool e cigarro. Milhões de pessoas no mundo todo, hoje, vivem na faixa crepuscular entre o alcoolismo social e a dependência irremediável. A faixa etária do alcoolismo baixa sensivelmente. Começa-se a beber cada vez mais cedo. Caem os tabus: as mulheres passam a beber como os homens, "normalmente".

Essa hegemonia do álcool como tóxico não deve apenas à tradição.

Alguns dos efeitos do álcool correspondem a estados altamente valorizados pela civilização industrial e urbana: o dinamismo, a pronta iniciativa, o otimismo quanto aos resultados. Hemingway, um alcoólatra, costuma dizer que o álcool é a droga do homem em ação. Até o terceiro copo, ele tinha toda a razão. Foi por esse motivo que o movimento hippie dos anos 1960 repeliu e recusou o álcool, a droga dos "caretas", dos enquadrados no sistema, dos homens-máquinas produtores de mais-valia.

A volta do álcool no anos 1970 diz mais sobre essa década do que longos tratados.

Com o álcool, porém, generalizou-se o uso do seu irmão proibido, a cocaína, sobretudo inalada. Ao que consta, os efeitos da cocaína guardam acentuados parentescos com a ação do álcool. Desinibição instantânea. Autoconfiança artificial e até temerária. Megalomania. Extroversão eufórica. Não admira: os quadros clínicos da cocaína são sempre duplos, cocaína e alcoolismo.

Com o álcool, a cocaína tem sobretudo a propriedade de ser perfeitamente compatível com a vida urbana e o mundo dos negócios.

Ao contrário da maconha e do LSD, a cocaína, parece, não proporciona mundos fantásticos nem estados "irreais". É uma droga que acentua e agudiza o senso do aqui e do agora. Sobretudo, não destrói o rigor social da vivência do tempo, é uma droga que não briga com o relógio. 

A generalização do uso da cocaína inalada alastrou-se pelos anos 1970 e só fez crescer na década seguinte. Hoje, seu uso atingiu um volume que chega a mobilizar unidades do exército norte-americano para a destruição de suas fontes de produção, na Bolívia e no Peru.

A história da cocaína é a história da ascensão social de uma substância.

O pó cristalino que o Ocidente elegante aspira sob nome de cocaína é o extremo resultado de um processo que começa nas folhas da coca, planta que os índios da área andina mascam há milênios para cortar a fome, tirar o sono e multiplicar as energias. Na origem, a coca é a droga de trabalhadores miseráveis, esfaimados, mal-nutridos, obrigados a tarefas desumanas como o trabalho nas minas, durante dez horas contínuas, ou mais. A origem escravo-obreira da cocaína diz tudo sobre a natureza. É uma droga energética, não fantástica, não utópica, a droga do aqui e do agora. Sem dúvida, com o álcool.

Paulo Leminski
1944 - 1989