13.11.24

O universo inesperado


A Arqueologia é a ciência da tarde do homem, não é a dos seus triunfos do meio dia. Falei da minha visita a um pântano engrinaldado de chamas, ao cair da noite. Tudo nele havia sido substância, matéria, fios pendentes, velhos envoltórios de sanduíches, presentes quebrados e armações de camas de ferro. Entretanto, nada havia presente que a Ciência não pudesse reduzir aos seus elementos, nada que não fosse produto do mundo urbano, cujas torres distantes se erguiam, trêmulas, na obscuridade, além do charco. Lá, no depósito de lixo da cidade, jaziam os surrados destroços da vida: o fragmento brilhante de um velho disco que roubara um coração humano, flores murchas entre latas amolgadas de cerveja, a faca abandonada de um assassino, ao lado de uma colher quebrada. Era tudo um labirinto de invisíveis e flutuantes conexões, e o seria até que perecesse o ultimo homem. Todos esses materiais abandonado já tinham sido sujeitos ao poder dissolvente da mente humana. Haviam sido arrancados de veios profundos de rochas, fervidos em grandes cadinhos e transportados a milhas de distância das suas origens. Tinham assumido formas que, se bem materiais, haviam existido primeiro como projetos na profunda escuridão de um cérebro vivo. Tinham sido definidos antes da sua existência, nomeados e afeiçoados no sopro de ar que denominamos palavra. Essa palavra fora evocada numa caixa craniana que, com todos os seus poderes contidos e ocultos paradoxos, surgira de maneiras que só podemos retraçar vagamente. Afirma-se que Einstein, de uma feita, teria dito que se recusava a acreditar que deus jogasse dados com o universo. Ao examinarmos, porém, o longo curso retrospectivo da História, diríamos que a liberdade do tempo, inesperadamente, é um elemento essencial da sua criação. Toda vez que nasce uma criança, os dados, na forma de genes, de enzimas e dos intangíveis do meio casual, estão sendo rolados outra vez, como quando a figura encardida do fogo sibilou ao meu ouvido a tragédia dos recém-nascidos desamparados da cidade. Cada um de nós é uma impossibilidade estatística, em torno da qual paira um milhão de outra vidas, destinadas a não nascer - que, todavia, não se manifestam, um potencial escondido no escuro depósito do vazio.


Loren Eiseley
1907 - 1977