31.1.25

Mal-estar na modernidade


Freud declara guerra à tradição como o mais radical dos iluministas. Por que devemos aceitá-la? Por que nossos antepassados a aceitaram? Mas eles eram pessoas grosseiras, muito ignorantes que nós. Por que há livros, como a bíblia, que comprovam a veracidade da tradição? Mas esses livros são, na maioria dos casos, lacunares e contraditórios. Por que é proibido pô-la em dúvida? Mas isso é a melhor confissão de que a tradição é fraudulenta.

Temos que pensar por nós mesmos, em vez de aceitar a tradição. É nisso que consiste a maioridade, é na superação de todos os infantilismos que consiste nossa verdadeira dignidade. São as crianças que vivem de ilusões - crenças sem fundamento objetivo, influenciadas quase exclusivamente pelo desejo. O homem maduro enfrenta a realidade, por mais dura que seja. Ele ficará, com isso, "como a criança que deixa a casa paterna, onde gozava de tanto calor e aconchego. Mas o infantilismo deve ser vencido, não é verdade? O homem não pode ficar eternamente criança, precisa um dia confrontar-se com a vida hostil".

Para atingir a condição adulta, para aprender a usar sua própria razão, o homem tem que livrar-se do Denkverbot, da proibição de pensar. Há uma proibição de pensar que Freud chama, curiosamente, de Loyale Verbot, a que se destina a assegurar a lealdade dos súditos (Braven Untertanen). E há o Denkverbot imposto pela religião.

É o mais infantilizante de todos, porque a religião deve sua origem a uma situação infantil: a impotência da criança diante do pai. Deus é a projeção do pai num registro supra-sensível. A religião é uma forma fantasmática de proteger o indivíduo dos perigos da natureza, da implacabilidade da morte, dos sofrimentos impostos pela vida social. Ela minora o infortúnio terrestre e promete no paraíso uma beatitude compensatória. Ela é nociva individualmente, porque o Denkverbot que ela induz impede o homem de fazer racionalmente os sacrifícios pulsionais exigidos pela civilização, e com isso a culpabilidade inconsciente passa a ser o destino do indivíduo. E é nociva socialmente, porque na qualidade de neurose coletiva ela impede uma regulamentação pulsional capaz de promover um verdadeiro equilíbrio entre os objetivos de preservação do grupo e as reivindicações individuais de felicidade. O crente troca uma gleba terrestre por um latifúndio na Lua. O homem sensato, pelo contrário, segue o conselho do poeta, abandonando os céus aos anjos e aos pardais.

Como bom iluminista, no entanto, Freud não combate apenas a religião, mas todos os obscurantismos. É o caso do ocultismo. A psicanálise pode desmistificar as práticas supersticiosas, seja mostrando sua falsidade, à medida que são simples realizações de desejo, seja retirando-lhes o lado milagroso, à medida que correspondem a alguma realidade empírica, como talvez seja o caso da telepatia. O ocultismo é um atalho para pseudoverdades, em detrimento do caminho longo e tortuoso que leva às certezas científicas, e por isso pode ser comparado à atividade especulativa de quem quer enriquecer de um lance só, desprezando o trabalho regular e cotidiano.

Sérgio Paulo Rouanet
1934 - 2022