1.3.25

O desenho


A técnica moderna tem origem no Renascimento. Leonardo da Vinci, talvez o maior de seus artistas, foi também engenheiro na acepção mesma do termo. Arquiteto, pinto e escultor, enquanto construiu ou idealizou  obras de hidráulica e de saneamento, projetou cidades e casas pré-fabricadas. Realizou ou imaginou propostas técnicas de soberba envergadura, mas soube mostrar desprezo aos seus contemporâneos que: "relegavam a pintura ao nível das tarefas mecânicas". Para ele a criatividade, em todos os setores, tinha valor humano. Somente se exprimiam em categorias diferentes. Importante era distingui-los para conhecê-las e, conhecendo-se, valorizá-las com propriedade. Exemplo de compreensão sobre o manejo da técnica e da arte, significa, entretanto, mais o entrechoque de tendências, que o produto de uma harmonia de princípios. Não houve harmonias no Renascimento, como é sabido. Nele, os princípios da técnica moderna conviveram com as mais torpes superstições. O príncipe consulta para si médicos, mas também astrólogos. Estes o aconselham a atender certas influências das estrelas e abster-se de ostras.

Os mitos, comodamente alojados nas largas brechas do conhecimento científico, revelam-se no próprio Leonardo. Registrou o canal lacrimal baseado no conhecimento que adquiriu estudando a anatomia até a dissecação de cadáveres, mas concluiu que "as lágrimas vem do coração para os olhos".

Quando se erra em ciência pode-se acertar em poesia, como se vê.

A ciência média descobriu mais tarde a glândula que destruiu essa noção e também descobriu que o coração é uma bomba, com o que todos concordam. A poesia inclusive.

Leonardo desenhou como técnico e desenhou como artista. Procurou uma composição onde nada fosse arbitrário. Em seus quadros as figuras se inscrevem em formas geométricas definidas. Maneira de apropriação do conhecimento científico para informar a sensibilidade criadora. Procura de racionalidade.

Com ele e os demais artistas do Renascimento o desenho se impõe. Passou a ser linguagem da técnica e das arte - como interpretação da natureza, e como desígnio humano, como intenção ou arte no sentido platônico. Desenharam contra a insuficiência das ferramentas disponíveis, impacientes com a lentidão do trabalho manual. Lançaram as bases da técnica moderna. Desenharam ainda uma nova concepção do homem. Em seus quadros ele aparece sadio e vigoroso, cheio de amor à vida.

No Renascimento o desenho ganha cidadania. E, se de um lado é risco, traçado, mediação para a expressão de um plano a realizar, linguagem de uma técnica construtiva, de outro lado é desígnio - intenção, propósito, projeto humano no sentido de proposta da consciência. Uma consciência que cria objetos novos e os introduz na vida real.

O "disegno" do Renascimento, donde se originou a palavra para todas as outras línguas ligadas ao latim, como era de esperar, tem os dois conteúdos entrelaçados. 

Um significado, uma semântica, dinâmicos, que agitam a palavra pelo conflito que ela carreia consigo ao ser a expressão de uma linguagem para a técnica e de uma linguagem para a arte. 

Em nossa língua, a palavra aparece no fim do século XVI.

Excerto da aula inaugural proferida pelo professor Vilanova Artigas na FAU-USP, no dia 1.3.1967