7.8.25

Ditadura e literatura


Os intelectuais presos, que começaram a ser postos em liberdade — os militantes políticos cumprindo já longuíssimas penas, alguns condenados para o resto da vida, como Prestes — custavam a conseguir trabalho. O anticomunismo da época maculava as criaturas; até os parentes se afastavam. A propaganda difamadora, que hoje desperta mais ridículo do que ódio, cavava fundo. E havia, acima de tudo, o medo. Na pequena burguesia, em que haviam sido recrutados os militantes políticos condenados, em absoluta maioria — comunistas e não comunistas — a campanha difamatória marcara as pessoas. Havia, ainda, no Brasil, quem acreditasse que os comunistas não tinham família, nasciam embaixo das pontes, viviam em promiscuidade sexual, alimentavam-se de bracinhos assados de crianças, pretendiam, com a vitória da revolução, estuprar mulheres, queimar propriedades, arrasar materialmente a sociedade. Essa pregação gerava ética especial: matar comunistas era justo, torturá-los era humano.

Graciliano Ramos, secretário da Educação em Alagoas, já conhecido como romancista, fora arrancado às funções, preso, metido em porão de navio, recolhido à penitenciária, em promiscuidade com criminosos comuns da pior espécie, com a cabeça raspada e vestindo o uniforme dos presidiários: jamais foi ouvido, jamais foi processado, jamais foi condenado e, apesar de tudo, penou longos meses, de cárcere em cárcere, de presídio em presídio. A injustiça não tinha importância, o erro não tinha importância, o arbítrio não tinha importância: a vítima era um comunista... A tortura campeava, infrene, levando pessoas à loucura, matando, marcando, mutilando, mas não tinha importância: as vítimas eram comunistas... E a estes se acusava de cruéis, desumanos, violentos e criminosos.

Foram os homens de letras que organizaram o esforço para conseguir a liberdade de Graciliano Ramos; libertado, abria-se para ele o problema do trabalho. Enfraquecido pelos meses de sofrimento e de má alimentação, com mulher e filhos para sustentar, desempregado, o romancista foi morar numa pensão do Catete: tinha de recomeçar a vida. Os amigos conseguiram, depois, sua nomeação para fiscal do ensino; a mais alta função que ocupou, em toda a sua existência, o maior romancista brasileiro depois de Machado de Assis. Para reforçar o orçamento doméstico conseguiu o emprego de revisor, exercido no Correio da Manhã. Na revista Cultura Política, dirigida por Almir de Andrade e consagrada à propaganda da ação do governo, fora encarregado de trabalho condigno mas, ainda ali, para reforço de orçamento doméstico, fazia revisão. Era curioso, — e triste também — ver aquele extraordinário escritor, o maior de nossa época, colocando, com sua costumeira meticulosidade, caprichadas meias-solas na prosa agreste dos pretensos homens de letras que tinham direito de escrever nos jornais e nas revistas.

Nelson Werneck Sodré
1911 - 1999