30.9.15

robert moses: o mundo da via expressa


[An excerpt from New York: a documentary film by Ric Burns]

Que esfinge de cimento e alumínio abriu seus crânios e devorou
seus cérebros e imaginação? [...]
Moloch cujas construções são sentenças!

Allen Ginsberg | Uivo

Notas

[...] a cidade precisava de uma estrada - ou era o Estado que a necessitava?

[...] Na verdade [...] como mostra Caro, virtualmente todo o terreno de que Moses se apropriou consistia em pequenas casas e sítios familiares.

[...] por obra de uma dialética fatídica, como a cidade e a rodovia não se coadunam, a cidade deve sair.

[...] Em sua pior fase, ele [Moses] se tornaria não tanto um destruidor - embora tenha destruído bastante - mas um executor de ordens e imposições alheias. Conquistara poder e glória inaugurando novas formas e novos meios em que a modernidade podia ser experimentada como uma aventura: lançou mão desse poder e dessa glória para institucionalizar a modernidade num sistema de necessidades cruéis e inexoráveis e de rotinas esmagadoras. Ironicamente, transformou-se em um foco pessoal para a obsessão e o ódio das massas, inclusive o meu próprio, no preciso momento em que perdera a visão e a iniciativa pessoais para se tornar um homem de organização; nós viemos a conhecê-lo como o capitão Ahab de Nova Iorque justamente quando, embora ainda no leme, perdera por completo o controle do navio.

[...] Uivo era brilhante ao desmascarar o niilismo demoníaco no âmago de nossa sociedade estabelecida e ao revelar o que Dostoievski um século antes definira como "a desordem, que é na realidade o grau mais elevado da ordem burguesa".

[...] Durante vinte anos, as ruas foram por toda a parte, na melhor das hipóteses, passivamente abandonadas e com frequência (como no Bronx) ativamente destruídas. O dinheiro e a energia foram canalizados para as novas auto-estradas e para o vasto sistema de parques industriais, shopping-centers e cidades-dormitórios que as rodovias estavam inaugurando. Ironicamente, então, no curto espaço de uma geração, a rua, que sempre servira à expressão da modernidade dinâmica e progressista, passava agora a simbolizar tudo o que havia de encardido, desordenado, apático, estagnado, gasto e obsoleto - tudo aquilo que o dinamismo e o progresso da modernidade deviam deixar para trás.

[...] Procurávamos abrir as feridas internas de nossa sociedade, mostrar que elas ainda permaneciam aí, fechadas mas não sanadas, que estavam se disseminando e supurando, que, se não fossem enfrentadas rapidamente, ficariam piores. Sabíamos que as vidas rutilantes das pessoas no rápido percurso encontravam-se tão profundamente mutiladas quanto as exigências castigadas e esquecidas das pessoas que estavam no caminho. Sabíamos, porque nós próprios estávamos justamente aprendendo a viver naquela via e a gostar de seu ritmo. [...] Nós, que sabíamos tão bem como doía arrancar as raízes, atiravamo-nos contra um Estado e um sistema social que parecia estar arrancando, ou explodindo, as raízes do mundo inteiro.

[...] artistas, pensadores e ativistas que questionaram o mundo da via expressa admitiam como certos a sua inesgotável energia e seu impulso inexorável. Eles encaravam suas obras e ações como antíteses, envolvidas num duelo dialético com a tese que estava sufocando todos os gritos e que varria todas as ruas do mapa moderno. Esse embate de modernismos radicalmente opostos conferiu à vida dos anos 60 muito de sua coerência e excitamento.

O que ocorreu na década de 70 foi que, justamente quando os gigantescos motores do crescimento e da expansão estacaram e o tráfego quase parou, as sociedades modernas perderam abruptamente sua capacidade de banir para longe o passado.

[...] Ser moderno, eu dizia, é experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia, ambiguidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é sólido desmancha no ar. Ser modernista é sentir-se de alguma forma em casa em meio ao redemoinho, fazer seu ritmo dele, movimentar-se entre suas correntes em busca de novas formas de realidade, beleza, liberdade, justiça, permitidas pelo seu fluxo ardoroso e arriscado.

Marshall Berman | 1982
Trad.: Carlos F. Moisés