21.1.16

rolling stones

[1933 - 2004]

Jonathan Cott: Acredito que o espírito dos anos setenta tende a se confundir com as ideias ou até desprezar as ideias manifestadas por Nigel Dennis e por uma série de noções que floresceram há uma década. 


Susan Sontag: Vamos falar sobre essa mania de classificar as décadas, porque sinto que há algo terrível em definir os anos cinquenta, sessenta e setenta como grandes construtos. São mitos. Agora precisaremos criar um novo conceito para os anos oitenta, e estou muito curiosa para ver o que as pessoas vão inventar. Esse discurso sobre as décadas é tão ideológico.

A ideia é que tudo que se esperou e se experimentou no anos sessenta não deu e não poderia dar certo. Mas quem diz que não vai dar certo? Quem diz que há algo de errado com as pessoas que se colocam à margem? Acredito que o mundo devia ser um lugar seguro para as pessoas marginais. Uma das principais coisas que deveria definir uma sociedade é permitir que as pessoas sejam marginais. O que mais choca nos países que se intitulam comunistas é o fato de seu ponto de vista não permitir pessoas marginais e não convencionais. Acredito que, de um jeito ou de outro, sempre deveria haver a possibilidade de as pessoas se sentarem na calçada, e uma das coisas interessantes que aconteciam antes era que muitas pessoas escolhiam ser marginais, e as outras pareciam não se importar. Acho que devemos permitir não só pessoas e estados de consciência marginais, mas também o que é incomum ou divergente. Defendo rigorosamente os divergentes. E também penso, é claro, que seria impossível que todos fossem divergentes – é óbvio, a maioria das pessoas tem de escolher uma forma central de existência. Mas em vez de nos tornarmos cada vez mais burocráticos, padronizados, opressivos e autoritários, por que não permitimos que mais e mais pessoas sejam livres?

[...]

O fato de Gritos e Sussurros - para usar o título do filme de Bergman -, em certo sentido, ser há tanto tempo o mundo designado às mulheres, e não o mundo do pensamento dialético, sempre me impressiona.

Na nossa cultura, elas foram designadas ao mundo dos sentimentos, porque o mundo dos homens é definido como o mundo da ação, da força, da capacidade executiva e da capacidade de desprendimento, portanto as mulheres se tornaram o receptáculo do sentimento e da sensibilidade. Na nossa sociedade, as artes são concebidas como atividades principalmente femininas, mas não o eram no passado, isso porque antes os homens não se definiam tanto nos termos da repressão das mulheres.

Uma das minhas campanhas mais antigas é contra a distinção entre pensar e sentir, o que é base de todas as visões anti-intelectuais: cabeça e coração, pensamento e sentimento, fantasia e julgamento... não acredito que isso seja verdade. Temos mais ou menos o mesmo corpo, mas tipos muitos diferentes de pensamento. Acredito que pensamos muito mais com os instrumentos dados pela cultura do que pelo corpo, e disso surge uma diversidade muito maior de pensamento no mundo. Tenho a impressão de que o pensar é uma forma de sentir, e que o sentir é uma forma de pensar.

Por exemplo, o que faço resulta em livros ou filmes, objetos que não são eu, mas são transcrições de algo - sejam palavras, imagens ou qualquer outra coisa -, imagina-se que esse processo seja puramente intelectual. Mas quase tudo que faço parece ter a ver tanto com a intuição quanto com a razão. Não é que o amor pressupõe a compreensão, mas amar alguém é se envolver em todo tipo de pensamento e juízos. Amar é isso - há uma estrutura intelectual de desejo físico, de luxúria. Mas o tipo de pensamento que faz essa distinção entre pensar e sentir é apenas uma das formas de demagogia que causam tantos problemas às pessoas por fazerem-nas desconfiar de coisas das quais não deveriam desconfiar, nem com as quais deveriam ser complacentes.

Entender a si próprio dessa maneira parecer ser muito destrutivo, e também muito culpabilizantes. Esses estereótipos de pensar versus sentir, cabeça versus coração, masculino versus feminino, foram inventados numa época em que as pessoas estavam convencidas de que o mundo seguia numa direção específica - ou seja, rumo a tecnocracia, racionalização, ciência, etc. - , mas foram todos inventados como uma defesa contra os valores românticos.

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Você precisa criar seu espaço - um espaço que tenha muito silêncio e muitos livros.

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Penso em mim mesma como alguém que se criou - é uma ilusão que funciona. Também penso em mim mesma como autodidata, apesar de ter tido uma excelente educação - Berkeley, Chicago, Harvard. Mas ainda acho que, em essência, sou autodidata. Nunca fui discípula nem protegida de ninguém, não fui lançada por ninguém, não "fiz minha carreira" por ser amante, esposa ou filha de alguém. Nunca esperei que fosse de outra maneira. Mas, é claro, não acho que seja ruim aceitar ajuda. Se você tiver ajuda, ótimo. Mas gosto do fato de ter feito sozinha. Achei que tinha de fazer sozinha, aceitei como um desafio. E me senti estimulada para fazer dessa maneira.

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No fundo, acho que devemos exterminar interpretações falsas e demagógicas... eu me identifico com essa iniciativa. Em momentos grandiosos, penso que estou envolvida nessa tarefa de arrancar cabeças - como Hércules fez com a Hidra - sabendo muito bem, é claro, que esse mesmo tipo de falsa consciência e de pensamento demagógico vai aparecer em outro lugar. Mas vou continuar fazendo isso o quanto puder, e sei que outras pessoas também vão continuar.

Antes eu disse que a tarefa do escritor é prestar atenção no mundo, mas obviamente acredito que a tarefa do escritor, como a concebo em relação a mim mesma, também é manter uma relação agressiva e antagônica para com todos os tipos de falsidade... e, repetindo, sabendo muito bem que se trata de uma tarefa infinita, pois você nunca vai acabar com a falsidade, com as falsas consciências ou com os falsos sistemas de interpretação. Mas deveria sempre haver um lugar em cada geração que se opusesse a essas coisas, e é isso que me incomoda tanto em algumas partes do mundo onde a única crítica à sociedade vem do próprio Estado. Acho que sempre deveria haver pessoas autônomas que, por mais quixotesco que pareça, tentam arrancar mais algumas cabeças, tentando acabar com a alucinação, a falsidade e a demagogia, tornando as coisas mais complicadas, pois existe um impulso inevitável em tornar as coisas mais simples. Mas, para mim, a coisa mais terrível seria sentir que concordo com as coisas que já disse e escrevi - isso me tornaria ainda mais desconfortável, pois significaria que parei de pensar.

trad.: Rogério Bettoni
outubro de 1979