17.4.25

Lei global, ordens locais


Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de "promoção do livre comércio", roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio de subsistência é chamado "enxugamento" ou simplesmente "racionalização". Nenhum desses feitos jamais foi incluído entre os atos criminosos passíveis de punição.

Atos ilegais cometidos no "topo" da escala social são extremamente difíceis de desvendar na densa rede de transações empresarias diárias. Quanto se trata de atividade que abertamente busca o ganho pessoal às custas dos outros, a linha que separa os movimentos permitidos dos proibidos é necessariamente imprecisa e sempre contenciosa, em nada comparável à inequívoca clareza ilegal do ato de forçar uma fechadura. Não admira que as prisões estejam cheias sobretudo de pessoas das camadas inferiores da classe operária que praticam roubos e outros crimes tradicionais.

Os crimes do "topo da escala" são perpetrados em um círculo íntimo de pessoas unidas pela cumplicidade mútua, a lealdade à organização e o esprit de corps, pessoas que geralmente tomam medidas eficazes para detectar, silenciar ou eliminar os que dão com a língua nos dentes. Eles exigem um nível de sofisticação legal e financeiro praticamente impossível de ser penetrado por quem está de fora, particularmente gente leiga ou não educada. E esses crimes não têm "corpo", nenhuma substância física; "existem" no espaço etéreo, imaginário, da pura abstração: são literalmente invisíveis - é preciso uma imaginação comparável à dos que os perpetram para divisar uma substância na forma ilusória. Levado pela intuição e o senso comum, o público pode bem suspeitar que algum roubo está na origem das fortunas, mas apontá-lo continua sendo uma tarefa claramente atemorizante.

Só em casos raros e extremos os "crimes empresarias" são levados aos tribunais e aos olhos do público. Fraudadores do fisco e autores de desfalques têm uma oportunidade infinitamente maior de acordo fora dos tribunais do que os batedores de carteira ou assaltantes.

No que diz respeito aos crimes "do colarinho branco", a vigilância do público é na melhor das hipóteses errática e esporádica; na pior, simplesmente inexistente. O que se passa durante os julgamentos de fraudadores de alto nível desafia as capacidades intelectuais do leitor comum de jornais e, ademais, é abominavelmente carente do drama que faz dos julgamentos de simples ladrões e assassinos um espetáculo fascinante.

O mais importante, porém, é que o crime "do colarinho branco" (geralmente cometido num "topo" extraterritorial) pode em última análise ser uma das causas principais ou secundárias da insegurança existencial e, assim, diretamente relevante para essa aborrecida ansiedade que persegue os cidadãos da sociedade no estágio final da modernidade e os torna tão obcecados com a segurança pessoal - mas de forma alguma pode ser concebido em si mesmo como uma ameaça a essa segurança. Qualquer perigo que possa se supor ou considerar no crime "do colarinho branco" é de uma ordem totalmente diversa. Seria extremamente difícil ver como levar os acusados à justiça possa aliviar os sofrimentos atribuídos aos perigos mais tangíveis que se esgueiram nos bairros pobres e ruas sórdidas da cidade. Não há, portanto, muito capital político a extrair do fato de ser visto como que fazendo algo contra o crime "do colarinho branco". E há pouca pressão política sobre os legisladores e guardiães da ordem para abrir suas mentes e flexionar seus músculos de modo a tornar mais efetivo o combate a esse tipo de crime; nenhuma comparação portanto com o clamor público contra os ladrões de carros, assaltantes e violentadores, ou contra os responsáveis pela lei e a ordem considerados muito frouxos ou condescendentes por não os colocarem no lugar onde deveriam estar, a prisão.

Por fim, mas não menos importante, há essa tremenda vantagem de que desfruta a nova elite global ao enfrentar os guardiães da ordem: as ordens são locais, ao passo que a elite e as leis do livre mercado a que obedece são translocais. Se os guardiães de uma ordem local tornam-se intrometidos e infames demais, há sempre a possibilidade de apelar às leis globais para mudar os conceitos locais de ordem e as regras locais do jogo. E, claro, há a possibilidade de se mudar se as coisas em nível local ficam quentes demais e incômodas; a "globalidade" da elite significa mobilidade e mobilidade significa a capacidade de escapar, de fugir.

Zygmunt Bauman
1925 - 2017