8.6.07

[Vovó]

Vovó com a touca na cabeça vinha sempre passar alguns dias em casa. Com seus 89 anos e, devido a idade, cega, ela lavrava louça, passava roupa, varria a casa. Sempre disposta para tudo o que fosse ao seu alcance.
Deitado no sofá, com a televisão ligada, eu ficava olhando ela com certo distanciamento vagal. Torpe. Amolecido devido ao calor e aos programas televisivos de auditórios. Olhava-a e nada fazia para ajudá-la. Nada. Às vezes ela vinha e se sentava ao meu pé, e ficava ouvindo o programa que assistia. Irritado, ligava o toca cd e colocava um Pantera bem alto. Cowboys from hell. Por muitas vezes eu deixava ligada a televisão. Tudo causava uma mistura de som estridente e irritante. Ela pedia para maneirar no volume, mas ignorava-a. Ignorava-a. Ela tão miúda, sentia dores na cabeça. Recolhia-se para o quarto dos meus pais. Trancava a porta. Não acendia a luz. Eu, porém, glorificava-me com certo prazer em vê-la arrastar-se, tão pequena, da sala para o quarto. Papai e mamãe chegavam do trabalho e nada dizia vovó a eles. A cada dia observava que ela se calava mais. A cada dia, ela ficava mais pequena. (Ou era minha raiva sobre ela que a diminuia?) Mais pequena e trabalhadeira. Acordava com as galinhas e preparava a mesa do café da manhã. (Como ela podia ser tão forte e tão pequena ao mesmo tempo?) Como ela fazia o café: o cheiro se espalhando pelos cantos da casa. O bolo de fubá. O suco de laranja. A banana na frigideira.
Vovó miúda sentava-se na mesa a espera da gente: eu, papai e mamãe. Papai lhe dava um beijo carinhoso na testa. Mamãe passava-lhes as mãos pela cabeça: “Bom dia, dona...” – como era mesmo o nome dela? –, “hum!, que delícia”, ao mesmo tempo que papai estalava a língua. Comíamos calados. Vovó espremia os olhos como se tentasse enxergar algo ao seu redor. Tateava confiante sobre os objetos. Alimentava-se conforme sua dieta, beliscando alguma coisinha. Papai devorava tudo com os olhos e com a boca. Mamãe tomava apenas uma xícara de café. Eu descascava uma banana.
Nós três saíamos: papai e mamãe para o trabalho e eu à escola. Papai sempre me lembrava: “Cuide de sua avó, à tarde. Não esqueça de lhe dar os remédios, tá filhão?”. Não dava. Deitava logo no sofá com o uniforme e despertava a tv. Vovó, não obstante, aparecia, enxugando um prato, na porta da sala para ver quem era. “É você, Raul?”. (Hoje, apenas resquícios de ecos). Esboçava um sim como resposta. E aumentava o volume da televisão. Vovó saía espremendo os olhinhos, mais e mais miúda, depois ela sentava ao meu pé, sempre no maldito horário. Tricotando alguma coisa. Com raiva, colocava novamente o Pantera. Cowboys from hell. Bem alto. Vovó tocava a testa com as costas da mão e recolhia-se aos passos tristes para o quarto dos meus pais.
Vovó veio a falecer num sábado qualquer de feriado. (Qual feriado?) Papai sério velava o corpinho na capela da igreja. Mamãe de olhos molhados, recebia tia Zizi. Aos poucos a família ia chegando.
Papai me puxou e, sendo tarde da noite, fez-me despedir da vovó. O caixão tão pequeno que mal comportava uma criança de dez anos. Pela primeira vez senti... senti...
Um horror! Descobri que a blusinha verde de lã – cor da qual eu mais gosto – com a qual eu tinha ido ao enterro de vovó, tinha sido obra dela. E um cheiro de manhã exalava. Melancolicamente.