2.10.09

bildungsroman



[Dali & Buñuel, 1928]


Cego corre perigo maior é em noite de luares...

[João Guimarães Rosa]

[...]


O cego da pistola retirou o sexo que ainda vinha a pingar e disse com voz vacilante, enquanto estendia o braço para a mulher do médico, Não tenha ciúmes, já vou tratar de ti, e depois subindo o tom, Eh, rapazes, podem vir buscar esta, mas tratem-na com carinho, que ainda posso precisar dela. Meia dúzia de cegos avançaram de rebolão pela coxia, deitaram mãos à rapariga dos óculos escuros, levaram-na quase de rastos, Primeiro eu, primeiro eu, diziam todos. O cego da pistola tinha-se sentado na cama, o sexo flácido estava pousado na beira do colchão, as calças enroladas aos pés. Ajoelha-te aqui, entre as minhas pernas, disse. A mulher do médico ajoelhou-se. Chupa, disse ele, Não, disse ela, Ou chupas, ou bato-te, e não levas comida, disse ele, Não tens medo de que to arranque à dentada, perguntou ela, Podes experimentar, tenho as mãos no teu pescoço, estrangulava-te antes que chegasses a fazer-me sangue, respondeu ele. Depois disse, Estou a reconhecer a tua voz, E eu a tua cara, És cega, não me podes ver, Não, não te posso ver, Então por que dizes que reconheces a minha cara, Porque esta voz só pode ter esta cara, Chupa, e deixa-te de conversa fina, Não, Ou chupas, ou na tua camarata nunca mais entrará uma migalha de pão, vai lá dizer-lhes que se não comerem é porque te recusaste a chupar-me, e depois volta para me contares o que sucedeu. A mulher do médico inclinou-se para diante, com as pontas de dois dedos da mão direita seguru e levantou o sexo pegajoso do homem, a mão esquerda foi apoiar-se no chão, tocou nas calças, tacteou, sentiu a dureza metálica e fria da pistola, Posso matá-lo, pensou. Não podia. Com as calças assim como estavam, enrodilhadas aos pés, era impossível chegar ao bolso onde a arma se encontrava. Não o posso matar agora, pensou. Avançou a cabeça, abriu a boca, fechou-a, fechou os olhos para não ver, começou a chupar.

[SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das letras, 1995. p. 177]