16.11.09

limpando a cabeça de velhos preconceitos

"Um erro irreparável cometido na idade da ignorância."
"Sim."
"É a idade em que casamos, em que temos nosso primeiro filho, em que escolhemos nossa profissão. Um dia saberemos e compreenderemos muitas coisas...

[Milan Kundera - A ignorância]

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A instituição do casamento pressupõe uma certa estabilidade, uma certa rotina no desempenho dos papéis convencionais de marido e mulher, ou pai e mãe, esvaziando afetivamente as relações dentro dela.
Na maioria das vezes, as pessoas envolvidas, em lugar de reagirem a isso, acabam encontrando na reprodução da "família tradicional" um recanto para sua inércia ou parasitismo afetivo...
Os casais costumam objetivamente encarnar este parasitismo. Um bom exemplo é o descuido dos homens e mulheres casados com o seu próprio corpo e com o ato físico do amor.

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A família existe não só para garantir a reprodução da sociedade burguesa através da difusão do autoritarismo, mas também como correria de transmissão de um dos suportes do capitalismo: a propriedade privada.
O papel da família é tão forte neste sentido que seus membros acabam por se julgar proprietários uns dos outros. Adquire-se o mesmo medo compulsivo de perder o outro, menos pela necessidade do amor e mais pela "tranqulidade psicológica" que ser proprietário (ou a propriedade) lhe dá. Esconder um do outro (ou até de si mesmo) algo novo e transformador, com o receio do risco da mudança, é a prática mais comum dos casais.

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Muitas pessoas valorizam o casamento como um sistema de "concessões mútuas" ou de sacrifícios recíprocos". Ceder ou "fazer sem gostar" geralmente acabam se transformando em cobranças futuras, estimuladas por mágoas e ressentimentos. Entretanto o fundamental do acasalamento é a solidariedade, a cumplicidade, isto é, dar e receber prazerosamente segundo as necessidades, e, sobretudo, com originalidade. Coisa difícil e, por isso mesmo, fascinante. Como o amor.

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Há um estímulo muito grande por parte da sociedade, não só para sermos autoritários, mas também para nos subordinarmos cegamente a algum tipo de autoridade. Começamos com uma fé para o Estado e, muitas vezes, reproduzimos esta mitificação nas nossas relações pessoais e afetivas. Endeusamos, colocamos no altar e, depois, a convivência vai ser a ferramenta que usaremos para destruir a imagem e fazer do ídolo um monstro indestrutível.
... os problemas das relações familiares funcionam como um bueiro enxugando nossa energia vital e provocando desempenhos insatisfatórios em outras atividades.

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As rupturas afetivas com a familia são causadas mais pelos ressentimentos e mágoas atuais por coisas vividas no passado junto a ela, do que por razões ideológicas.

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Sem uma familia nova, o exercício da nossa originalidade fica comprometido. Mas não é fácil construir experiências novas, são muitos os obstáculos impostos pela sociedade burguesa. Alguns são óbvios: a sobrevivência econômica no capitalismo limita muito os grande voos inovadores. Entretanto, a maioria dos obstáculos a novas experiências familiares seria derrubada se os movimentos de libertação da mulher alcançassem êxito.

[FREIRE, Roberto e BRITO, Fausto. Utopia e paixão - a política do cotidiano. 9 ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan SA, 1991. p. 82-89]