10.11.09

a vida de carlos em um dois três quatro pedacinhos


a partida


Carlos tinha emagrecido, a pele sobre ossos, depois da separação, sem ter para onde ir. A princípio perdidaço, comeu o pão que o diabo amassou pelos três meses que vieram a seguir: janeiro, fevereiro e março. Para voltar no tempo da história, caro leitor, era sua mulher quem não aguentava mais. E, portanto, os dois não se bicavam. A barba mal feita, a preguiça como companheiro de cama, o sorriso engolido não davam mais para ela e tampouco para ele. Para sorte do homem no auge dos seus quarenta anos, ele mantinha, a muito custo, uma lojinha de discos e livros usados onde poderia, ao menos, dormir e ver o que fazer dali pra frente. Até o fim do ano, o contrato de locação com a imobiliária, lhe dava a garantia de se estabelecer sob um teto, cuja semântica nós conhecemos como casa. No mesanino da lojinha, Carlos jogou umas almofadas, trouxe a televisão portátil - na casa da esposa, o casal tinha adquirido dois desses aparelhos domésticos -, uma mala de roupas e algumas fotografias de tempos outrora: simulação de uma antiga felicidade. Quem sorria na foto, era ele mesmo?

a fisionomia

Meio que indo acostumando ao ambiente, a barba cresceu como uma floresta romântica, vá lá, como diria o bruxo do Cosme Velho, cansado da busca por uma imagem melhor. Mas voltando a Carlos, que vivia este novo período, ele obteve, contra o desejo do autor, o aspecto de um bom selvagem. Porém, o medo que lhe havia comido o rosto no começo dessa sua nova trajetória estava substituido: espinhas pipocaram ao longo das horas de dedicação onanista.
Os pêlos surgidos nas mãos espantavam a clientela.


o esquecimento

Carlos agora outro homem só cor de solidão e meio animalesco, abandonou os amigos, esqueceu dos dois filhos e mais o resto da família: um tio louco, pelo qual era assaz apegado e a avó paterna, para a qual contava-lhe seus projetos e ideias jamais consumados. A avó, no entanto, era surda e há mais de uma década vivia num asilo lá nos cafundós de Pinhais. O cachorro, seu fiel companheiro, comeu o próprio rabo até a morte ao cheirar - instintivamente - a partida do seu dono. Carlos não chorou. Carlos, na verdade, desde os seus trinta anos, não chorava mais.

bau bau

As horas foram passando tic-tac tic-tac pelo cuco habitante da cabecinha desse personagem, os dias somaram-se no calendário riscado com x em tons vermelhos e os anos, por fim, aleluia, completaram-se até que, diferentão, outro, nem aí pra nada, resolveu se enforcar utilizando os cadarços dos sapatos. Obra sem efeito, por causa da força máscula, os cordões de algodão arrebentaram e deixaram um risco na carne viva do seu pescoço. Carlos ficou mais puto, fudido, enfezado, espumando pelos cantos da boca a raiva do fracasso. Porém, mesmo assim, consciente da grande cagada de ter se transformado no homem atual, uma coisa entre nada, apático e bunda mole, espetou nos olhos dois parafusos desparafusados da porta de alumínio da lojinha (doeu pacas!); tomou raticida misturado ao resto de guaraná sem gás da garrafa de dois litros e meio; cortou os pulsos com uma serrinha que trouxera da oficina do tio maluco e, morrendo morrendo, para terminar a história, graças a deus!, bateu as botas.
Mas Carlos não tinha botas.