24.7.17

A poesia

Atelier Populaire || 1968

A poesia - O que é a poesia? A poesia é a organização da espontaneidade criadora, a exploração do qualitativo segundo as leis internas de coerência, aquilo a que os gregos chamavam poiein, que é o "fazer", mas o "fazer" devolvido à pureza do seu momento original, em outras palavras, à totalidade.

Onde faltar o qualitativo, nenhuma poesia será possível. No vazio deixado pela poesia instala-se o oposto do qualitativo: a informação, o programa de transição, a especialização, o reformismo, em suma, o fragmentário sob suas diversas formas. Contudo, a presença do qualitativo não garante a poesia. Pode acontecer que uma grande riqueza de signos e de possibilidades se perca na confusão por falta de coerência, ou se destrua por interferências mútuas. O critério de eficácia deve predominar sempre. A poesia portanto é também a teoria radical digerida pela ação, o coroamento da tática e da estratégia revolucionária, o apogeu do grande jogo da vida cotidiana.

O que é a poesia? Em 1895, durante uma greve mal começada e que parecia votada ao fracasso, um militante do Sindicato das Estradas de Ferro tomou a palavra e mencionou um processo engenhoso e barato para fazer avançar os objetivos da greve. "Com 2 centavos de um determinado material utilizado corretamente podemos impossibilitar o funcionamento de uma locomotiva". O governo e os capitalistas imediatamente cederam. Aqui a poesia é claramente a ação que gera novas realidades, a ação de inversão de perspectiva. A matéria-prima está ao alcance de todos. São poetas aqueles que sabem como usá-la, que material qualquer não é nada se comparado com a profusão de energia sem igual disponibilizada pela vida cotidiana: a energia da vontade de viver, do desejo desenfreado, da paixão do amor, do amor das paixões, a força do medo e da angústia, o furacão do ódio e o ímpeto selvagem da fúria de destruir. Que transformações poéticas não poderemos esperar de sentimentos tão universais experimentados como aqueles associados à morte, à velhice e à doença? É dessa consciência ainda marginal que deve partir a longa revolução da vida cotidiana, a única poesia feita por todos, e não por um.

"O que é a poesia?", perguntam os estetas. E é então preciso lembrar-lhes esta evidência: a poesia raramente tem a ver com poema. A maior parte das obras de arte trai a poesia. Como poderia ser de outra forma já que a poesia e o poder são inconciliáveis? Quando muito, a criatividade do artista prende-se a si mesma, enclausura-se esperando a sua hora numa obra inacabada, aguardando o dia de dar a última palavra. Mas, mesmo que o autor espere muito dela, essa última palavra - aquela que precede a comunicação perfeita - nunca será pronunciada enquanto a revolta da criatividade não tiver levado a arte à sua realização.

A obra de arte africana, quer se trate de um poema ou de uma música, de uma escultura ou de uma máscara, só é considerada acabada quando é verbo criador, palavra atuante: só quando é um elemento criativo que funciona. Ora, isso não é válido só para a arte africana. Não existe arte alguma no mundo que não se esforce por funcionar; e por funcionar, mesmo no âmbito das recuperações ulteriores, com exatamente a mesma vontade que a gerou: uma vontade de viver na exuberância do momento de criação. Compreende-se por que razão as melhores obras não têm fim? É que elas exigem de todas as formas o direito de se realizar, de entrar no mundo da experiência vivida. A decomposição da arte atual é o arco idealmente retesado para tal flecha.

Nada pode salvar da cultura do passado o passado da cultura, com exceção dos quadros, da literatura, das arquiteturas musicais ou líricas que nos atingem pelo qualitativo, livre da sua forma - de todas as formas de arte. Isso ocorre com Sade, Lautreamónt, e também com Villon, Lucrécio, Rabelais, Pascal, Fourier, Bosch, Dante, Bach, Swfit, Shakespeare, Uccello. Eles se livram do seu envoltório cultural, saem dos museus nos quais a história os tinha colocado e se tornam dinamite para as bombas dos futuros realizadores da arte. O valor de uma obra antiga deve ser avaliado pela parte de teoria radical que contém, pelo núcleo de espontaneidade criadora que os novos criadores se prontificam a libertar para e por uma poesia inédita.

A teoria radical é exímia em dilatar a ação iniciada pela espontaneidade criadora, sem alterá-la nem desencaminhá-la de seu curso. Do mesmo modo, em seus melhores momentos, o processo artístico tenta imprimir ao mundo o movimento de uma subjetividade tentacular, sempre sequiosa de criar e de se criar. Mas, enquanto a teoria radical se gruda à realidade poética (a realidade que se faz), ao mundo que se transforma, a arte adota um processo idêntico com um risco muito mais elevado de se perder e corromper. Só a arte armada contra si mesma, contra aquilo que tem de mais fraco - de mais estético - resiste à recuperação.

É sabido que a sociedade de consumo reduz a arte a uma variedade de produtos de consumo. E quanto mais se vulgariza essa redução, mais a decomposição se acelera, mais crescem as possibilidades de uma superação. A comunicação tão imperativamente desejada pelo artista é impedida e proibida mesmo nas relações mais simples da vida cotidiana. De tal modo que a busca de novos modos de comunicação, longe de estar reservada aos pintores ou aos poetas, é parte hoje de um esforço coletivo. Assim acaba a velha especialização da arte. Já não existem artistas uma vez que todos o são. A futura obra de arte é a construção de uma vida apaixonante.

A criação importa menos que o processo que gera a obra, que o ato de criar. O que faz de alguém um artista é o estado de criação, e não o museu. Infelizmente, o artista raramente se reconhece como criador. Na maior parte do tempo, faz pose diante de um público, se exibe. A atitude contemplativa diante de uma obra de arte foi a primeira pedra lançada no criador. Inicialmente ele provocou essa atitude, mas agora tenta desfazê-la uma vez que, imperativos econômicos. É por isso que não existe mais obra de arte no sentido clássico do termo. Já não pode haver obra de arte, e ainda bem. A poesia reside em outro lugar, nos fatos, nos acontecimentos que criamos. A poesia dos fatos, que sempre foi tratada marginalmente, reintegra hoje o centro dos interesses de todos, o centro da vida cotidiana, que na verdade ela nunca abandonou.

A verdadeira poesia não dá a mínima para poemas. Na sua busca do livro, Mallarmé nada mais desejava do que abolir o poema, e como abolir um poema senão realizando-o? E essa nova poesia foi usada com fulgor por alguns contemporâneos de Mallarmé. Quando o autor de Hérodiade lhes chamou "anjos da pureza", teria ele tomado consciência de que os agitadores anarquistas com suas bombas ofereciam ao poeta uma chave que, encurralado na sua linguagem, ele não podia usar?

A poesia está sempre em algum lugar. O seu recente abandono das artes torna mais fácil ver que ela reside antes de tudo nos gestos, num estilo de vida, numa busca desse estilo. Reprimida em toda parte, essa poesia por toda parte floresce. Brutalmente recalcada, reaparece na violência. Consagra motins, casa-se com a revolta, anima os grandes carnavais revolucionários antes que os burocratas lhe fixem residência na cultural hagiográfica.

A poesia vivida soube provar no decorrer da história, mesmo nas revoltas parciais, mesmo no crime - essa revolta de um só, como disse Coeurderoy - , que ele protegia acima de tudo aquilo que há de irredutível no homem: a espontaneidade criadora. A vontade de criar a unidade do homem e do social, não na base da ficção comunitária, mas a partir da subjetividade, é o que faz da nova poesia uma arma que todos devem saber manejar por si mesmos. A temporada de caça à experiência poética já começou. A organização da espontaneidade será obra da própria espontaneidade.

Raoul Vaneigem
Trad.: Leo V.
1967