24.10.17

a paixão do mundo



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O mundo é assim feito: até mesmo os imbecis têm explicações. Tudo tem um sentido para as pessoas: uma configuração urbana, um rio, um gato. Somos todos dicionários ambulantes; compramos tal calça comprida porque cremos "que ela nos dá um certo look". Cada objeto em nossa casa conta uma história, cada ato tem um sentido, todos os nossos encontros são o objeto de uma leitura afetiva e mental. Vivemos num mundo de definições e narrativas - o livro da vida.

Há, também, as Grandes Narrativas, narrativas explicativas do mundo. Todos nós conhecemos pessoas para quem todos os males de nosso país vêm do pecado original, ou dos imigrantes, segundo a escolha da crença. O homem e a mulher são animais que buscam sentido; nada os preenche mais do que o que se denomina a grande narrativa que pretende decifrar o mundo, a sociedade, a história. Os contos de nossa infância são substituídos por escritos mais ou menos míticos que nos servem de companheiros de caminhada: o marxismo, o muro de Berlim, a guerra das civilizações, o islã, o mercado, o liberalismo, o fim das ideologias, a espera do apocalipse, a emancipação humana são algumas das sagas da humanidade. As crônicas do cotidiano, da vida amorosa, das relações familiais, todas as anedotas e os dramas pessoais formam a trama mais modesta de nossas narrativas individuais.

O anarquismo também repousou sobre uma Grande Narrativa, com variantes. A gesta anarquista inclui figuras heroicas como Malatesta, Makhno, os combatentes da Guerra Civil espanhola ou do antifascismo; acontecimentos como a Insurreição, a Revolução; narrativas como "a guerra de classes", "a exploração econômica", "o colonialismo", "o movimento social".

Todos esses episódios avaliados segundo um critério recorrente, a Natureza. São incontáveis os textos libertários que opõem as "leis da natureza" às "leis humanas", que apelam para "o instinto de revolta", para as "luzes da razão humana". Vem naturalmente aos espírito a célebre frase de Élisée Reclus: "O homem é a natureza adquirindo consciência de si mesma". 

Ronald Creagh
Trad.: Plínio A. Coelho