11.5.24

Marx além de marx


Nos cadernos I e II, o percurso teórico vai do dinheiro diretamente ao valor. O valor se apresenta ao leitor na forma de dinheiro. O valor é, portanto, a mesma merda que o dinheiro. Não se produz aqui o thaumázein filosófico: o assombro, o estupor, a vontade de saber não nos conduz a sínteses cognitivas ideais, a hipóteses fantásticas; mas a imediatas prática da crítica, da denúncia, da recusa. Por outro lado, não nos encontramos ante o valor, nos encontramos dentro do valor: estamos dentro deste mundo feito de dinheiro. O dinheiro representa a forma das relações sociais - e as representa e sanciona ao organizá-las. Talvez, não seria ingenuidade demais esse movimento imediato da abordagem, não exatamente o valor, mas ao valor na forma do dinheiro - como se o dinheiro contivesse todo o valor possível? Entretanto, o mundo é representado assim, como um mundo de mercadorias que o dinheiro representa tout court, determinando por meio de si a valorização das mercadorias. Darimon realiza uma abordagem exaustiva - imbecil, porém útil - para o "ingênuo" Marx. Por outro lado, o que poderia significar uma teoria do valor que não se achasse subordinada, imediata, íntima e necessariamente, à teoria do dinheiro, à forma com que a organização capitalista da relação social se apresenta, no cotidiano da troca social? É apresentada uma teoria do valor, mas poderia ela ser construída que não fosse com uma imediata redução à teoria do dinheiro, da organização capitalista da troca e, no interior da troca, teoria da exploração/ Começo a considerar útil a "ingenuidade" da abordagem marxiana. Há tantíssimo ódio de classe nessa ordenação da matéria! O dinheiro tem a vantagem de apresentar imediatamente a cara asquerosa da relação social do valor. O dinheiro apresenta o valor, de uma só vez, como troca social submetida ao poder de mando, organizada para a exploração. Desse jeito, não preciso mais afundar as mão no hegelianismo para descobrir a dupla cara da mercadoria e do valor. O dinheiro tem uma só cara: a do patrão.

A teoria do valor enquanto teoria de síntese das categorias - é um legado dos economicistas políticos clássicos e da mistificação burguesa. Poderíamos, portanto, descartar a teoria do valor sem problemas, a fim de nos situarmos no campo da revolução.

A lei do valor se apresenta não como uma mediação, mas imediatamente como lei da exploração.

Situar o dinheiro na posição de representante da forma-valor significa reconhecer que o dinheiro constitui a forma exclusiva de funcionamento da lei do valor. Significa reconhecer que o dinheiro constitui o terreno imediato da crítica. Crítica imediata.

Não se poderá falar de valor, se não se falar de exploração; sobretudo, se não se determinar a função da valorização enquanto sobredeterminação dos conteúdos concretos da luta de classes, enquanto pode de mando e dominação de uma classe sobre outra - determinando, consequentemente, a composição de uma e de outra.

O dinheiro enquanto crise da lei do valor (e a sua desmistificação preventiva) [...] O dinheiro enquanto sobredeterminação e tensão do poder, de mãos dadas com a composição das duas classes em luta, foi o segundo elemento.

Criticar a mistificação da transição histórica que o Estado burguÊs realizada na forma de extração do mais-valor.

As crises sempre se apresentarão, doravante, na forma monetária.

O estado é aqui "síntese da sociedade civil", uma definição formulada na Einleitung, e que nos Grundisse encontra seguidas confirmações antes de ser amadurecida em definições mais completas, que vão considerar o estado como o representante direto do capital coletivo, ele próprio (para dizê-lo com as palavras de Engels) um "capitalista coletivo".

O dinheiro é um equivalente, se em ocasiões ele tem a natureza da equivalência, isso indica primariamente uma equivalência da desigualdade social. [...] A crise decorre, na verdade, da desigualdade intrínseca das relações de produção e, em vez de corrigida ou reformada, somente pode ser suprimida, no ato mesmo que se suprime a própria desigualdade. O dinheiro reveste um conteúdo que é, de modo eminente, desigualdade e exploração. A relação de exploração é o verdadeiro conteúdo do equivalente monetário.

Desmistificar o "verdadeiro socialismo", portanto, significa mostrar essa cumplicidade entre o reformismo e o interesse do capital no desenvolvimento. Significa, assim, insistir na centralidade da forma para o funcionamento da exploração. E levar o discurso até o ponto em que a revolução se apresente como libertação do conteúdo da exploração, na medida em que essa é libertação da forma global da circulação do valor, i.e., do valor tout court; onde o valor nada mais é do que fórmula de cálculo da exploração. [...] Não há revolução sem a concomitante destruição da sociedade burguesa, do trabalho assalariado (enquanto produtor de valor), e do dinheiro (enquanto instrumento de circulação do valor e do poder de mando). Todo progresso da socialização da forma da circulação do valor constitui, por isso, um avanço progressivo do conteúdo da exploração. Constitui, por conseguinte, o progresso dessa articulação que deve ser destruída, assim como todas as formas ideológicas e institucionais que o representam e o dinamizam. E tanto mais continuam sendo-o se socialistas foram. O dinheiro, os exercícios reformistas sobre o dinheiro: eis aqui reunida toda a merda. Por outro lado, "a luta de classes como fechamento, nisso se resolve o movimento e a análise de toda a merda.

O dinheiro: o valor enquanto mediação social e equivalente da desigualdade, a teoria do valor enquanto parte da teoria do mais-valor, a teoria do mais-valor enquanto regra social da exploração. É, em definitivo, o nível em que se vai desenvolver a polêmica (o dinheiro, a síntese da sociedade civil na forma do Estado, o aprofundamento da forma social da exploração), o que impõe a qualificação da teoria do valor e a sua definição conjunta, em termos exclusivos de mais-valor e socialização da exploração.

A questão geral seria: as relações de produções existentes e suas correspondentes relações de distribuição podem ser revolucionadas pela mudança no instrumento de circulação - na organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformação da circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes e nas relações sociais nelas baseadas?

Nenhuma forma do trabalho assalariado, embora uma possa superar os abusos da outra, pode superar os abusos do próprio trabalho assalariado.

O determinante do valor não é o tempo de trabalho incorporado nos produtos, mas o tempo de trabalho necessário num determinado momento.

O valor é dinheiro, é esta merda, para o que não existe outra alternativa senão a sua destruição. A supressão do dinheiro. Estudemo-lo, pois, para destruí-lo.

Marx ressalta [...] a função política do dinheiro enquanto símbolo, enquanto função do poder de mando. O dinheiro como "mero signo", como "símbolo social", como "ideia a priori", em suma, "o dinheiro como sujeito" [...]. O símbolo pode converter-se em sujeito, o valor pode converter-se em poder de mando, a sobredeterminação pode romper a dialética e reger com força e poder de mando. O fascismo, a barbárie e a regressão não são impossíveis. O símbolo pode ser mais forte do que a realidade, porque emerge da cisão consciente da realidade.

Dinheiro e desigualdade

O dinheiro, a forma-valor constitui uma relação de desigualdade, genericamente representada na relação de propriedade, e substancialmente na relação de poder.

Desenvolvimento é luta, ruptura, criação.

O dinheiro como medida e como equivalente geral a de produzir para o dinheiro. Produzir para o dinheiro é concomitantemente um momento de exploração e um momento de socialização. A socialização capitalista exalta a socialidade do dinheiro enquanto exploração; a socialização comunista destrói o dinheiro ao afirmar a imediata socialidade do trabalho.

Tão fundamental quanto a representação do valor na figura do dinheiro, é a recusa do valor, a radicalidade da inversão. O comunismo não é a realização da trocabilidade do valor, nem a operatividade do dinheiro enquanto medida do real. O comunismo é a negação de toda medida, é a afirmação da pluralidade mais exacerbada. Da criatividade.

Dinheiro como meio de circulação. O dinheiro é representado como "poder autonomizado sobre os indivíduos".

A dominação do dinheiro tem a aparência e a indiferença da mobilidade, da fluidez. O dinheiro exerce a sua dominação na forma paradoxal da evanescência. Está em todas as partes e se dilui na persistência; mas, ao mesmo tempo, é reunido como signo da totalidade. A intermediação do dinheiro é tanto sutil quanto rígida. Mas é aqui que esse paradoxo se materializa. O poder evanescente do dinheiro adere às coisas e as transforma conforme a sua imagem e semelhança. Trata-se de um poder demiúrgico que, por meio do signo, modifica a realidade. É evidente que essa tautologia a respeito do dinheiro é, nesse Marx, tautologia para o poder. Um poder que se projeta por todas as partes. E, na realidade, o dinheiro é representado como relação de produção, "porque a própria relação do dinheiro é uma relação de produção quando a produção é considerada em sua totalidade"

O dinheiro é a demonstração que o movimento do valor é pura precariedade. A sua solidez é apenas tendencial e tão somente consegue determinar-se segundo uma alternância contínua - entre o caráter social do ambiente do trabalho necessário e a sua sobredeterminação coercitiva, pelo poder de mando.

Continua sendo o dinheiro o que revela - ao apresentar-se enquanto dinheiro, enquanto "abstrata sensualidade" - a via que o poder de mando capitalista percorre sobre a sociedade, a fim de sobredeterminar continuamente a oscilação da exploração. O dinheiro nos permitirá compreender como o mais valor se consolida em poder de mando social, ao mostrar o fato que a gestão da crise pelo poder de mando é a situação normal do capital. [...] O poder de mando busca incessantemente uma sobredeterminação política do processo. Portanto, a abertura dos Grundisse com o dinheiro descortina e antecipa o tom geral para a jornada teórica que vai da crítica do dinheiro à crítica do poder.

Toni Negri
Trad.: Bruno C.