7.5.18

A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre


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O debate acerca da possibilidade de separar verdadeiramente os “direitos humanos” da economia e da política não é exclusivo da América Latina; há questões que sempre vêm à tona quando o Estado utiliza a tortura como arma política. Apesar da mística que a cerca, e do impulso compreensível de trata-la como um comportamento aberrante além do campo político, a tortura não é particularmente complicada ou misteriosa. Uma ferramenta do tipo mais cruel de coerção, ela se manifesta com grande previsibilidade sempre que um déspota local ou invasor estrangeiro carece de consentimento necessário para governar: Marcos nas Filipinas, o xá Reza Pahlevi no Irã, Saddam no Iraque, os franceses na Argélia, os israelenses nos territórios ocupados, os Estados Unidos no Afeganistão e no Iraque. A lista poderia ser ampliada muitas vezes. O abuso generalizado de prisioneiros é uma indicação infalível de que os políticos estão tentando impor um sistema – político, religioso ou econômico – que é rejeitado por um grande número de pessoas sob seu domínio. Da mesma maneira que os ecologistas definem um ecossistema pela presença de certas “espécies indicativas” de plantas ou pássaros, a tortura é a espécie indicativa de um regime que está engajado num projeto antidemocrático profundo, mesmo que tenha chegado ao poder por meio de eleição.


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A primeira aventura dos Garotos de Chicago, nos anos 1970, deveria ter servido de advertência para a humanidade: as ideias deles são perigosas. Como conseguiu impedir que sua ideologia fosse responsabilizada pelos crimes cometidos em seu primeiro laboratório, essa subcultura de ideólogos não-arrependidos acabou ganhando imunidade, liberta que foi para correr o mundo em busca de novas conquistas. Hoje, estamos vivendo novamente uma era de massacres corporatistas, com vários países sofrendo tremenda violência militar na tentativa de refazê-los dentro do modelo econômico de “livre mercado”; desaparecimentos e tortura estão de volta como desforra. E, mais uma vez, os objetivos de construir mercados livres e a necessidade de tamanha brutalidade são tratados como se fossem inteiramente desconectados. 


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Nos anos 1970 e no começo dos 1980, Friedman e seus subscritores corporativos rapidamente construíram uma nova rede de think tanks de direita e produziram o veículo mais importante para disseminar as visões de Friedman, a minissérie em dez capítulos da PBS intitulada Free to Chose – subscrita por algumas das maiores corporações do mundo, entre as quais Getty Oil, Firestone Tire & Rubber Co., PepsiCo, General Motors, Bechtel e General Mills. 

Quando Friedman articulou a teoria da crise pela primeira vez, no começo dos anos 1980, os Estados unidos estavam passando por uma recessão – uma combinação de inflação alta com desemprego. As políticas de Chicago, agora conhecidas como Reaganomia, certamente exerceram influências sobre Washington. No entanto, nem mesmo Reagan se atrevia a implementar aquele tipo de terapia de choque devastadora com a qual Friedman sonhava, igual à que havia prescrito no Chile.

Mais uma vez, seria um país latino-americano a testar o terreno para a teoria das crises de Friedman – porém, desta vez não seria um Garoto de Chicago que guiaria o caminho, mas um novo estrato de doutores do choque, mais adequados à nova era democrática.

Naomi K. | Trad.: Vania C.