27.9.24

A história na era digital


Outra questão de nosso presente é a das mutações que impõem à história o ingresso na era da textualidade eletrônica. O problema já não é o que, classicamente, vincula os desenvolvimentos da história séria e quantitativa com o recurso ao computador para o processamento de grande quantidades de dados, homogêneos, repetidos e informatizados. Agora se trata de novas modalidades de construção, publicação e recepção dos discursos históricos.

A textualidade eletrônica de fato transforma a maneira de organizar as argumentações, históricas ou não, e os critérios que podem mobilizar um leitor para aceitá-las ou rejeitá-las. Quanto ao historiador, permite desenvolver demonstrações segunda uma lógica que já não é necessariamente linear ou dedutiva, como é a que impõe a inscrição, seja qual for a técnica, de um texto em uma página. Permite uma articulação aberta, fragmentada, relacional do raciocínio, tornada possível pela multiplicação das ligações hipertextuais. Quanto ao leitor, agora a validação ou a rejeição de um argumento pode se apoiar na consulta de textos (mas também de imagens fixas ou móveis, palavras gravadas ou composições musicais) que são o próprio objeto de estudo, com a condição de que, obviamente, sejam acessíveis em forma digital. Se isso é assim, o leitor já não é mais obrigado a acreditar no autor; pode, por sua vez, se tiver vontade e tempo, refazer total ou parcialmente o percurso da pesquisa.

No mundo dos impressos, um livro de história supõe um pacto de confiança entre o historiador e seu leitor. As notas remetem a documentos que o leitor, no geral, não poderá ler. As referências bibliográficas mencionam livros que o leitor, na maioria das vezes, não poderia encontrar senão em bibliotecas especializadas. As citações são fragmentos recortados por mera vontade do historiador, sem possibilidade, para o leitor, de conhecer a totalidade dos textos de onde foram extraídos os fragmentos. Esses três dispositivos clássicos da prova da história (a nota, a referência, a citação) estão muito modificados no mundo da textualidade digital a partir do momento em que o leitor é colocado em posição de poder ler, por sua vez, os livros que o historiador leu e consultar por si mesmo, diretamente, os documentos analisados. Os primeiros usos dessas novas modalidades de produção, organização e certificação dos discursos de saber mostram a importância da transformação das operações cognitivas que implica o recurso ao texto eletrônico. Aqui há uma mutação epistemológica fundamental que transforma profundamente as técnicas da prova e as modalidades de construção e validação dos discursos de saber.

Um exemplo das novas possibilidades abertas tanto para a consulta de corpus de documentos como para a própria construção de uma argumentação histórica é a dupla publicação (impressa, nas páginas da American Historical Review, e eletrônica, no site da American Historical Association) do artigo que Robert D. dedicou às canções subversivas recolhidas pelos espiões da polícia do rei nos cafés parisienes do século XVIII. A versão eletrônica oferece ao leitor o que o impresso não pode lhe dar: uma cartografia dinâmica dos lugares onde são cantadas as canções, os informes da polícia que recolhem as letras subversivas, o corpus de canções e, graças à gravação feita por Hélène D., a escuta dos textos tal como os ouviram os contemporâneos. Assim se estabelece uma relação nova, mais comprometida com os vestígios do passado e, possivelmente, mais crítica com respeito à interpretação do historiador.

Ao permitir uma nova organização dos discursos históricos, baseada na multiplicação das ligações hipertextuais e na distinção entre diferentes níveis de textos (do resumo das conclusões à publicação dos documentos), o livro eletrônico é uma resposta possível, ou ao menos apresentada como tal, à crise da edição nas ciências humanas. Em ambos os lados do Atlântico os efeitos são comparáveis, embora as causas principais não sejam exatamente as mesmas. Nos Estados Unidos, a questão principal é a redução drástica das aquisições de monographs pelas bibliotecas universitárias, cujos recursos são devorados pelas assinaturas de publicações científicas que, em alguns casos, têm preços consideráveis (entre 10.000 e 15.000 dólares por ano). Daí a hesitação das editoras universitárias diante da publicação de obras que são consideradas por demais especializadas: teses de doutorado, estudos monográficos ou livros de erudição. Na França, e sem dúvida mais amplamente na Europa, uma redução similar da produção, que limita o número de títulos publicados e recusa as obras demasiadamente caras, provém sobretudo da diminuição do públicos de leitores assíduos - que não era formado apenas por universitários - junto com a queda do volume de suas compras.

A edição eletrônica dos livros de história que as editoras não querem ou não podem publicar é a solução para essa dificuldade? As iniciativas tomadas nesse sentido, com a criação de coleções digitais dedicadas a publicar livros novos, permitiram pensar que é assim. Porém continua pendente uma questão: a da capacidade desse livro novo de encontrar ou produzir seus leitores. Por um lado, a longa história da leitura mostra fortemente que as mudanças na ordem das práticas costumam ser mais lentas que as revoluções das técnicas e que sempre estão defasadas em relação a estas. A invenção da imprensa não produziu imediatamente novas maneiras de ler. Por sua vez, as categorias intelectuais que associamos com o mundo dos textos subsistem diante das novas formas do escrito, enquanto que a própria noção de "livro" se acha questionada pela dissociação entre a obra, em sua coerência intelectual, e o objetivo material que assegurava sua imediata percepção e apreensão. Por outro lado, não se deve esquecer que os leitores (e os autores) potenciais dos livros eletrônicos, quando não se trata de corpus de documentos, são ainda minoritários. Continua existindo uma profunda brecha entre a obsessiva presença da revolução eletrônica nos discursos e a realidade das práticas de leitura, que continuam estando, em grande medida, apegadas aos objetos impressos e que não exploram senão parcialmente as possibilidades oferecidas pelo digital. O fracasso e o desaparecimento de numerosos editores que se haviam especializado no mercado dos ensaios e dos romances em formato eletrônico nos lembram que seria uma erro considerar que o virtual já é real.

Roger Chartier
Trad.: Cristina A.