19.10.20

Crossroads

Cartoon de Singer

Não acho necessário dizer muito mais coisas sobre os militares. Nunca foram importantes. Como são nacionalistas por definição, hierarquia & tradição, exercem com garbo & submissão a humilhante postura de bodes expiatórios e acabam como receptáculo de todos os ódios decorrentes de suas atitudes. A história do exército é a história da lealdade cega a Sua Majestade, que foi herdada pela República. Imolavam-se com nobreza de espírito em nome do Reino. Protegiam as fronteiras, digamos assim. E, na maioria do casos, alargavam-nas, invadindo e anexando outros territórios. Depois da Revolução Francesa, passaram a ser leais à pátria, ao primeiro-ministro. Beto, no entanto, tinha uma visão mais pragmática: Lealdade o caralho. É uma legenda de aluguel. Quem pagar mais, leva. Não são inocentes úteis. Aliam-se aos civis canalhas e levam o seu. Querem grana, sim senhor, como qualquer mortal. Mas não querem o poder, pois não sabem administrar. Fazem o serviço sujo, limpam a área e entregam de mão beijada o país ao bando de ocasião. Fingem que são isentos. Outra coisa: esse negócio de destreza bélica e táticas de guerra é balela. Qualquer um pode chefiar um exército. Até uma camponesa como Joana d'Arc transformou-se do dia para a noite num eficiente general que quase expulsou os ingleses da França. Bastou ouvir umas vozes e partiu pro campo de batalha. Depois, assou na fogueira, mas esta já é uma outra história. 

É verdade que, de tempos em tempos, há levantes, cizânias, dissidências internas e os caras resolvem virar o jogo por conta própria, mas eu sabia que eram casos isolados. Na maior parte das vezes, estão a serviço de alguém, não necessariamente do supremo mandatário da Nação. Raul, por exemplo, acreditava numa terceira hipótese: achava que essa movimentação esporádica tinha uma outra razão: a ociosidade irritante que reina nos quartéis durante o tempo de paz. Os caras ficam lá, jogando basquete, desmontando as carabinas, lustrando as botas, lavando latrinas, sim, senhor, não, senhor, a maior pasmaceira. De repente, dá uma louca e resolvem barbarizar.

Enquanto isso, os verdadeiros mentores do golpe - a elite, os empresários, industriais, latifundiários e demais corruptos de plantão - ficam na sombra, mexendo os pauzinhos. Antes de mais nada, a desestabilização (econômica e moral): qualquer marcha pela família, greve de caminhoneiros ou um panelaço bem orquestrado resolve isso. Depois de constituída a junta militar que derrubou o governo legitimamente eleito, no primeiro vacilo, os cagões são substituídos um por um. No caso do Brasil, optaram por colocar na linha de frente do primeiro mandato o Castello Branco, considerado um moderado, pois ninguém imaginava que a coisa fosse durar muito tempo. Tanto que assumiram o poder sem dar um tiro. O país não é sério, o povo é alienado, a esquerda não tem estrutura, as entidades de classe estão desparelhadas e a mídia está do nosso lado. Não vai haver problemas. Umas bordoadas bem dadas aqui & acolá e tudo volta ao normal. Não foi bem assim. Nada que preocupasse, mas, sei lá, esses estudantes andam fazendo muitas arruaças. Pois bem, o moderado resolveu cassar 116 mandatos, suspender os direitos políticos de 547 parlamentares e demitiu 2.147 profissionais de várias áreas. Do outro lado, a coisa se dá mais ou menos da seguinte maneira: a reação revolucionária procura equilibrar a ação reacionária. Afinal, depois de três meses de arbitrariedades, a resistência começa a se articular. Já não é mais nem uma questão de patriotismo ou de dignidade ferida, é que ninguém suporta um invasor ou usurpador barbarizando impunemente dentro de nossa própria casa. No mínimo, neguinho vai deixar o sabonete molhado no meio do caminho pro filhodaputa escorregar. Mas há discussões no alto comando. Divididos, os militares resolveram dar um golpe dentro do golpe e obrigaram o Castello a entregar o poder a um marechal menos moderado: Costa & Silva assume o segundo mandato. Mesmo estando tudo sob controle, por via das dúvidas, o helicóptero do Castello caiu no meio da mata. A guerrilha urbana começa a fazer estragos sérios. Operários entram em greve. Intelectuais armam passeatas de 100 mil manifestantes. Estudantes invadem centros acadêmicos e reitorias. Há revolta no campo. Músicos compõem letras que incomodam e são cantaroladas pelas ruas até por inofensivas donas de casa. E começam a aparecer as primeiras vítimas: estudantes e operários assassinados em confronto com a polícia. Novamente por via das dúvidas, Costa e Silva morre em circunstâncias não muito bem esclarecidas. Há quem diga que viu uma foto do corpo dele num jornal estrangeiro com dois furos no abdômen. Mas é boato, imagina! Deve ter sido um aneurisma, diverticulite, AVC, sei lá. Assume o Médici, e a coisa pega fogo. Em todas as épocas mais delicadas da história do Brasil, é sempre convocado um gaúcho para pôr ordem na casa. É uma tradição. Ele é alto, elegante, olhos azuis, sobrenome italiano. E muito macho, tchê! Devidamente financiado pelo capital americano, ele arma toda uma superestrutura de repressão, com direito a estágios de policiais em países civilizados, no intuito de se especializarem em novos e mais eficazes tipos de tortura. É um assunto complexo. Requer muita pesquisa histórica, riqueza nos detalhes & refinamento. O limite da dor. A fronteira última da resistência humana. Como destruir o caráter do inimigo através da humilhação? São temas de profunda reflexão. Apenas um espírito muito atento consegue perceber a eficácia do bambu debaixo das unhas sobre o choque elétrico nos testículos, por exemplo. Num teste simples de delação de companheiros, será o afogamento mais eficiente que o pau de arara? Fico imaginando um encontro desses num hotel cinco estrelas de Miami ou Las Vegas, com break para cafezinho, suco de goiaba e bolachas de água e sal.

PRIMEIRO FÓRUM INTERNACIONAL DA TORTURA: NOVOS RUMOS, NOVAS TENDÊNCIAS

Dinâmica operacional. 
Produtos & serviços. Planejamento.

Secretárias poliglotas fazem a tradução simultânea, que chega aos microfoninhos de ouvido da plateia lotada por cadetes recém-formados, sargentos, e tenentes, provenientes de vários países. Além de médicos legistas e psicológicos, claro. Conferências, mesas-redondas, debates, workshops, dossiês, demonstrações ao vivo, exemplos históricos, planilhas, gráficos, slides. (O processo é simples: são dois cavaletes de madeira, com cerca de 1,5 metros de altura e uma ranhura na parte superior, onde se encaixa um cano de ferro. A vítima, geralmente nua, tem os pulsos e tornozelos envoltos em tiras de...) Os temas são sugestivos, com abordagens modernas & instigantes: Cadeira do dragão - uma visão holística. A tortura psicológica & outras nuanças retóricas. Novas técnicas de sodomia em prisioneiros grávidas. Sevícias, tratamento degradante, violações, suplícios, maus tratos & outras especulações semânticas. A importância do empalamento para aumentar a autoestima do carrasco. Escoriações, contusões, lesões, fraturas: como fazer o serviço direito sem deixar rastros de nenhum tipo. Fala-se mutio em tecnologia, know-how, equipamentos de ponta. Citam Beccaria, Sun Tzu, Calígula, Filinto Müller. Uma coisa séria. De primeiro mundo.

Coincidência ou não, Médici é o primeiro milico que não morre na ativa e completa o mandato. Cumpriu com mérito tudo o que a elite tinha programado para se perpetuar no poder pelos cinquenta anos seguintes. Foi eficaz: a resistência interna estava dizimada. Ou exilada. Ou calada. Ou sob vigilância. Alguns membros inclusive literalmente castrados. Dizem que torturaram uma criança de seis anos na frente da mãe para que ela delatasse companheiros. Mas deve ser boato, imagina! Propaganda da esquerda. Protestos internacionais pipocam. Era hora de voltar à democracia. Por via das dúvidas, assume um alemão que, como se sabe, de democracia entende muito pouco. Ernesto Geisel, o quarto militar a presidir o país, é uma incógnita. Será um elemento de transição? Continuará a barbárie? Fará com que o país retorne ao estado de direito? Promoverá a tão sonhada abertura? Será pelo menos um déspota esclarecido? Possibilitará a volta dos exilados? Terminará com a censura prévia aos órgãos de imprensa? Levantará a intervenção nos sindicatos? Mais ou menos. Ainda não era hora. As elites estavam receosas. Devemos pensar nas salvaguardas. Por salvaguardas, ele entendeu que tinha antes de assassinar toda a cúpula local do PCB. E assim foi feito. Por desencargo de consciência, antes de passar o bastão, ele embolsou a propina de 20% da KWU, a empresa alemã que construiu a usina de Angra, garantindo um plus à sua aposentadoria. Geisel não morreu na ativa, também completou o mandato. Segurou o estado de exceção o quanto pôde (ou quanto lhe foi sugerido, digamos assim). Foi um titere à altura. Do Figueiredo, o quinto e último general que presidiu a junta militar, não vou falar nada. Era um idiota. Não ficaria dois dias como bedel de uma escola ou como vendedor numa loja de sapatos. Quando a lama baixou, argumentaram que, perto das ditaduras do Chile ou da Argentina, a brasileira foi uma brincadeira. Um passeio. Uma bobagem. Argumento dubio: a supressão do estado de direito de um país dificilmente pode ser medido numericamente. Na verdade, nunca vamos saber com certeza se a grande maioria do povo brasileiro conseguiu sobreviver à ditadura militar porque é muito forte ou simplesmente porque não tomou conhecimento dela.

Lealdade. Legenda de aluguel. Ociosidade nos quartéis. Na realidade, todas essas teorias nunca me satisfizeram. Essa fidelidade cega à hierarquia ou a uma causa me era irreal e insuportável. Me dá medo. Sempre tive verdadeiro pavor de alguém que acredita piamente em alguma ideologia ou credo. Tanto lá, quanto cá. São os piores. São os mais perigosos. Se são capazes de morrer, são também capazes de matar, torturar. São capazes de explodir o próprio corpo, junto às granadas, numa discoteca, mesquita ou shopping, levando para o além centenas de civis. A tropa (tanto do exército quanto da guerrilha) é constituída de elementos suicidas, bombas-relógios ambulantes, lemingues humanos a serviço de uma ideia, seja ela humanitária ou escrota. Progressista ou retrógrada. Revolucionária ou reformista. Liberal ou conservadora. Fascista ou comunista. Lá pelo meio do campeonato, ela se perde, cai no vazio, vira um dogma, fica reduzida à guerra pela guerra. Olho por olho etc. Toda boa ideia, com o tempo, vira um código de Hamurabi, não tem por onde.

Anular-me. Ter orgulho de fazer parte de uma guarnição invisível. Ser batizado com um codinome sugestivo. Colocar meus espírito a serviço de uma causa maior. Ela está acima de mim. Está acima de todos. Ela foi forjada a ferro & fogo. A causa é feita do suor, da humilhação, das lágrimas e do sangue do povo oprimido. Obedecer. Acatar, sabotar, infiltrar-me. Agir. Não tenho identidade, sou um número, um mero estafeta no exército de libertação nacional. Estudo, me aprofundo, faço o dever de casa. Sei que sozinho nada sou. Somos centenas, somos milhares, somos o futuro. Juntos, temos força; juntos, venceremos. Não discordo, não discuto, não critico, não tergiverso. Minha vontade é dirigida para a finalidade suprema. Macho. Sou um grão de areia, um mísero elo nesta corrente sebastianista que trará de volta nosso messias. Sacrifício. Entrega. Renúncia. Virtude. Não tenho mulher, não tenho filhos, não tenho bens, não tenho ambições próprias. Tudo é coletivo. Amoldo-me à massa. A massa necessita de uma direção. Meu dever. Meu objetivo. Minha sina. Meu rito. A massa necessita de ordem para alcançar o poder. O poder nunca é delegado, é conquistado. Sou um soldado. Sou um missionário das Terras do Bem-Virá. Trago alento. Trago esperanças. Venho para evangelizar. Sou um monge. Vou jejuar durante quarenta dias & quarenta noites antes que meu míssil exploda o quartel general. Ou a vila onde aqueles camponeses ignorantes e reacionários insistem em apoiar o governo. Mulheres, velhos e crianças irão pelos ares. Mas é necessário. Os fins justificam os meios. Nada muda sem derramamento de sangue.

Furio Lonza