5.8.19

trabalho: o roubo da vida


O despertador interrompe novamente teu sono - como sempre, demasiado cedo. Arrasta-te do quente da tua cama para a casa-de-banho para um duche, um barbear e uma cagadela, depois desces a correr até a cozinha onde engoles um bolo ou, se tiveres tempo, uma torrada e ovos com uma chávena de café. Depois apressas-te a sair, para enfrentares engarrafamentos ou multidões no metro até chegares... ao trabalho, onde o teu dia é gasto em tarefas que não são da tua escolha, em associação compulsiva com outros envolvidos em tarefas relacionadas, cujo objetivo principal é a reprodução contínua das relações sociais que te obrigam a sobreviver desta maneira.

Mas isto não é tudo. Para compensar, recebes um salário, uma quantia de dinheiro que (após pagares a renda e as contas) tens de levar para centros comerciais para comprares comida, roupa, várias necessidades e entretenimento. Embora isto seja considerado o teu "tempo de trabalho", também ele é atividade compulsória que apenas em segundo lugar garante a tua sobrevivência, sendo o seu objetivo principal, novamente, a reprodução da ordem social atual. E para a maioria das pessoas, momentos livres destes limites são cada vez mais em menor número.

Segundo a ideologia dominante desta sociedade, esta existência é o resultado de um contrato social entre iguais - iguais perante a lei, quer dizer. A trabalhadora, diz-se, aceita o contrato de vender a sua força de trabalho ao patrão por um salário acordado mutuamente. Mas será que um contrato pode ser considerado livre e igual quando uma das partes detém todo o poder?

Se olharmos para este contrato com mais atenção torna-se claro que não é contrato nenhum, mas a mais extrema e violenta extorsão. Isto é, atualmente, mais escandalosamente evidente nas margens da sociedade capitalista, onde pessoas que viveram durante séculos (ou, em alguns casos, milênios) segundo os seus próprios termos encontram a sua capacidade para determinarem as condições da sua existência arrancadas pelos bulldozers, pelas serras elétricas, pelo equipamento mineiro e por aí fora, dos dominadores mundiais. Mas este é um processo que tem vindo a decorrer há séculos, um processo que envolve um gritante roubo de terras e vida em larga escala, aprovado e levado a cabo pela classe dominante. Privadas dos meios para determinarem as condições da sua existência, não se pode dizer, honestamente, que os explorados estejam a fazer um contrato livremente e de igual para igual com as suas exploradoras. É, claramente, um caso de chantagem.

E quais são os termos desta chantagem? As exploradas são forçadas a vender o tempo das suas vidas aos exploradores, em troca de sobrevivência. E esta é a verdadeira tragédia do trabalho. A ordem social do trabalho baseia-se na oposição imposta entre vida e sobrevivência. A questão de como uma pessoa se vai safar suprime a de como essa pessoa quer viver, e com o passar do tempo tudo isto parece natural e limitamos os nossos sonhos e desejos às coisas que o dinheiro pode comprar.

Contudo, as condições do mundo de trabalho não se aplicam unicamente àqueles com empregos. Podemos facilmente ver como o desempregado, à procura de emprego com medo da fome e de ficar sem casa, é apanhado no mundo do trabalho. Mas o mesmo acontece para a pessoa que vive da ajuda do estado, cuja sobrevivência depende da existência da burocracia da segurança social... e mesmo para aqueles para os quais evitar arranjar emprego se tornou uma tal prioridade que as suas decisões acabam por se centrar em esquemas, furtos em lojas, reciclar lixo - todas as diferentes maneiras de se safar sem um emprego. Por outras palavras, atividades que poderiam ser boas maneiras de apoiar da mera sobrevivência o projeto de vida dessa pessoa. De que modo, na verdade, é que isto difere de um emprego?

Mas qual é a verdadeira base do poder por detrás desta extorsão que é o mundo do trabalho? É óbvio, existem leis e tribunais, polícia e forças militares, multas e prisões, o medo da fome e de não ter casa - todos aspectos da dominação bastante reais e significativos. Mas mesmo a força das armas do estado pode apenas ser bem sucedida na realização da sua tarefa porque as pessoas se submetem. E aqui está a verdadeira base de toda a dominação - a submissão das escravas, a sua decisão de aceitarem a segurança da miséria e servidão conhecidas em vez de arriscarem o desconhecido da liberdade, a sua vontade de aceitarem uma sobrevivência garantida mas sem cor, em troca da possibilidade de realmente viverem, que não oferece garantias algumas.

Assim, para pormos um fim na nossa escravidão, para irmos além dos limites de simplesmente nos safarmos, é necessário tomar a decisão de recusarmos submetermo-nos; é necessário começarmos a reapropriarmo-nos da nossa vida aqui e agora. Tal projeto coloca-nos, inevitavelmente, em conflito com toda a ordem social do trabalho; portanto, o projeto de reavermos as nossas existências deve também ser o projeto de destruir o trabalho. Para ser claro, quando digo "trabalho" não me refiro à atividade através da qual uma pessoa cria os meios da sua própria existência (a qual, idealmente, nunca seria separada de simplesmente viver) mas antes a uma relação social que transforma esta atividade numa esfera separada da vida dessa pessoa e a coloca ao serviço da ordem dominante, de forma que essa atividade, na verdade, deixa de ter qualquer relação direta com a criação da sua existência, e em vez disso apenas a mantém no campo da mera sobrevivência (seja qual for o nível de consumo) através de um conjunto de mediações nas quais a propriedade, o dinheiro e a troca de mercadorias estão entre as mais significativas. Este é o mundo que temos de destruir durante o processo de recuperarmos as nossas vidas, e a necessidade desta destruição faz do projeto de reapropriação das nossas vidas e dos projetos de insurreição e revolução social um só.

Wolfi Landstreicher
Tradução Raividições